São Paulo, quinta-feira, 11 de setembro de 2008

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NINA HORTA

A extinção das máquinas


Dei a máquina de macarrão para alguém que usou duas vezes. Meu medo é que ela apareça aqui outra vez

ALGUMAS COISAS mudam. Por exemplo, a comparação de gadgets culinários dos anos 80 e a impressão de que sem eles não se viveria mais um segundo.
E o que falhou? O aparelho de fazer ovo quadrado. A colher para saquinhos de batata palha. O moedor de grão-de-bico, a panelinha de barro para cozinhar só uma cabeça de alho...
O que sobrou? Panelas, tenho muitas, uso poucas; três italianas, não sei a marca, que comprei na Hamacher Schlemmer, em Nova York, para cozinhar num flat. Era uma frigideira, um caldeirão, uma panela média de cabo. A longo prazo, foi uma economia, mas o preço era de enfartar. Uma batedeira de mão, que não vivo sem, com cara de frágil, mas agüenta o tranco.
Só passou a vigorar quando aposentei minha batedeira Sunbeam, que somente batia e misturava, de um material branco, lindo.
Quando o Empório Santa Maria abriu, tinha para vender uma dessas batedeiras semiprofissionais que fazem macarrão e o diabo a quatro, linda. E tem uma manual que parece um dicionário bom, gordo, carnudo... Muito para minha cabeça. "Retire a tigela grande, ponha em off, coloque o triturador de carne e uma tigela que não seja a média, mas a minimédia, e pulse três vezes."
Adivinhem se usei.
E a máquina de fazer macarrão. É a que mais dá prazer nos primeiros dias, mas fazer macarrão também exige um bom tempo e um bom lugar e uma pessoa para limpar toda a farinha de trigo que se espalhou pela casa. Dei de presente para alguém que usou duas vezes e passou para a frente. O meu medo é que, qualquer dia, ela dê a volta inteira e apareça aqui outra vez.
A sorveteira é antiga, veio da Alemanha, uma geladeirinha, para falar a verdade. E a tigela é fixa, não dá para tirar e lavar, e a máquina não pode ser virada de cabeça para baixo. Então, complica, o único jeito bom de lavar seria com a língua.
Mas faz um sorvete!
A maior lição que tive foi quando cheguei a uma professora de pães na Freguesia do Ó tida como a melhor padeira de São Paulo. Pois lá chegando, os instrumentos dela eram latas velhas de banha e uma gilete enferrujada para fazer os cortes na massa. Um gênio, a criatura.
A máquina de café é antiga, e o café sai frio; é difícil encaixar o sachê que fica bem embaixo, você tem quase que se deitar para encaixá-lo.
Um dia perguntei na rua Paula Souza por que as coisas fabricadas fora do Brasil não acabavam e por que as daqui acabavam num triz. E ele me respondeu com muita lógica.
Se eu vendesse esta panela de pressão para a senhora e ela não acabasse nunca, do que eu iria viver? E por falar em panela de pressão, tenho uma imortal. Inglesa, decidida, 40 anos, daquelas que usam sandália Birkenstock, meio machona, com sardas, cozinha na metade do tempo das outras. Quando uma borracha acabava, eu mandava pedir na Inglaterra e vinha numa semana.
Até que um dia o pessoal de lá se danou com a minha panela e disse que não iria mandar mais nada, raio de panela que não acabava. Respondi dizendo que não tinha culpa que a panela fabricada por eles sobrevivesse gerações, eles que tratassem de fazer uma pior, eu não abdicaria da minha. Continuaram mandando.
Os espanhóis estão chegando com produtos jamais vistos, gelatinas milagrosas, pozinhos que adensam líquidos (que sempre existiram, cansei de ver em hospital, mas quem aqui acredita em alguma coisa que já não tenha passado pelo crivo do "lá fora?").
Bem feito, deixamos de comprar na farmácia, agora temos que comprar em kit do Ferran Adrià. Essas máquinas das quais falamos acima estão em extinção, como as baleias e os micos-leões-dourados, dando a vez para as muito mais modernas.
Cuidado, olho aberto, que cavalo não desce escada. Ou não sobe?

ninahorta@uol.com.br


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