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RESENHA DA SEMANA
A corda no pescoço
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
François Villon (1431-?) viveu com a corda no pescoço. Roubou, matou, foi preso e
condenado à morte -da qual
escapou por pouco, conseguindo comutar a pena em banimento da cidade de Paris, em
1463, quando desapareceu para
sempre. Não admira que tenha
escrito as suas duas maiores
obras em forma de "Legado" e
"Testamento".
"É excepcional que um poeta
seja um bandido, um criminoso
rematado, muito suspeito de lenocínio, filiado a companhias
assustadoras, vivendo de pilhagens, arrombador de cofres,
eventualmente assassino, sempre à espreita, sentindo-se com a
corda no pescoço, sempre escrevendo versos magníficos", escreveu Paul Valéry.
Não há verso de Villon em que
a consciência da morte não esteja presente. Mas seu "Legado" é,
antes de tudo, uma forma virulenta e obscena de ironia. Também não deixa de ser irônico
que a data e as circunstâncias da
morte do autor tenham permanecido desconhecidas. É a
"sombra da corda", a que se refere o poeta e tradutor Sebastião
Uchoa Leite na sua introdução a
esta reedição bilíngue e revista
da "Poesia", de Villon, que o faz
escrever com os pés no chão.
"Villon ocupa lugar único na
literatura, porque é o único poeta a não ter ilusões (...). Ele nunca mente a si mesmo. (...) A
grandeza de Villon está em proclamar inconscientemente o divino direito que tem o homem
de ser ele próprio, único dos
chamados "direitos humanos"
que não é um produto artificial.
(...) Villon é destituído de imaginação. (...) Ele canta as coisas
tais como são", sentenciou Ezra
Pound.
Villon escreveu o que viu e viveu. Deixou versos para os que
lhe fizeram bem e mal -em referências cifradas que muitas vezes dificultam o entendimento
dos poemas. Um mundo realista, satírico e obcecado pela perecibilidade dos corpos.
Seu verso mais célebre e citado
("Mais o sont les neiges dántan"
-"E onde estão as neves dos
anos", na bela tradução da "Balada das Damas do Tempo Ido"
por Sebastião Uchoa Leite) pode
ser tomado como emblema dessa visão. Villon desafia o mundo
ilusório dos símbolos ao comparar as grandes damas do passado, com seus nomes e legendas, às neves de outrora. "Porque a morte tudo colhe."
"Ele é totalmente medieval;
não obstante, seus poemas assinalam o fim da poesia medieval.
(...) Fossem quais fossem as sementes da Renascença existentes em Dante, houve sementes
ou indícios de uma eclosão muito mais moderna nas rimas desse Villon", escreveu Pound.
Em Villon, um universo de
símbolos rotos se desfaz diante
de um mundo físico cuja realidade maior é a morte. E não é à
toa que o poeta desfere tantos
golpes contra a usura e suas
alianças com o poder. Ela é metáfora de um novo valor simbólico que já ali começa a impor
sua predominância ilusória: o
dinheiro produz a ilusão da perenidade, que é o contrário da
vida.
Contra as ilusões simbólicas,
Villon faz a linguagem falar um
jogo semântico e satírico de contrários e antífrases: "Tanto se fala que se contradiz, (...) Quem
mais me é veraz é quem mais
mente; (...) Em quem me nega
enxergo uma aliança" etc. O
"Legado" é vingança; o "Testamento" é escrito por quem nada
tem a deixar além da própria vida.
A antífrase expõe o mundo às
avessas: "Não há mimos fora da
fome,/ Nem favor que dos inimigos" ("Balada das Contraverdades"). Contra o símbolo como ilusão metafísica de sobrevivência à morte, exaltação do
amor, da beleza ou da perenidade das legendas, Villon usa a linguagem como consciência realista da vida, pela paródia e a ironia, em sua materialidade carnal. Um crime é um crime. Um
homem é só um homem.
Com raras exceções, o símbolo não remete mais a nada elevado, fora da vida, mas se entrecruza com outros símbolos para
formá-la num jogo semântico
de contradições e duplos sentidos. Está aí o maior legado de
Villon à modernidade: a vida
passa a ser jogo e linguagem assombrados pela morte.
Poesia
Autor: François Villon
Tradução e organização: Sebastião
Uchoa Leite
Editora: Edusp
Quanto: R$ 38 (454 págs.)
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