São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA
A corda no pescoço

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

François Villon (1431-?) viveu com a corda no pescoço. Roubou, matou, foi preso e condenado à morte -da qual escapou por pouco, conseguindo comutar a pena em banimento da cidade de Paris, em 1463, quando desapareceu para sempre. Não admira que tenha escrito as suas duas maiores obras em forma de "Legado" e "Testamento".
"É excepcional que um poeta seja um bandido, um criminoso rematado, muito suspeito de lenocínio, filiado a companhias assustadoras, vivendo de pilhagens, arrombador de cofres, eventualmente assassino, sempre à espreita, sentindo-se com a corda no pescoço, sempre escrevendo versos magníficos", escreveu Paul Valéry.
Não há verso de Villon em que a consciência da morte não esteja presente. Mas seu "Legado" é, antes de tudo, uma forma virulenta e obscena de ironia. Também não deixa de ser irônico que a data e as circunstâncias da morte do autor tenham permanecido desconhecidas. É a "sombra da corda", a que se refere o poeta e tradutor Sebastião Uchoa Leite na sua introdução a esta reedição bilíngue e revista da "Poesia", de Villon, que o faz escrever com os pés no chão.
"Villon ocupa lugar único na literatura, porque é o único poeta a não ter ilusões (...). Ele nunca mente a si mesmo. (...) A grandeza de Villon está em proclamar inconscientemente o divino direito que tem o homem de ser ele próprio, único dos chamados "direitos humanos" que não é um produto artificial. (...) Villon é destituído de imaginação. (...) Ele canta as coisas tais como são", sentenciou Ezra Pound.
Villon escreveu o que viu e viveu. Deixou versos para os que lhe fizeram bem e mal -em referências cifradas que muitas vezes dificultam o entendimento dos poemas. Um mundo realista, satírico e obcecado pela perecibilidade dos corpos.
Seu verso mais célebre e citado ("Mais o sont les neiges dántan" -"E onde estão as neves dos anos", na bela tradução da "Balada das Damas do Tempo Ido" por Sebastião Uchoa Leite) pode ser tomado como emblema dessa visão. Villon desafia o mundo ilusório dos símbolos ao comparar as grandes damas do passado, com seus nomes e legendas, às neves de outrora. "Porque a morte tudo colhe."
"Ele é totalmente medieval; não obstante, seus poemas assinalam o fim da poesia medieval. (...) Fossem quais fossem as sementes da Renascença existentes em Dante, houve sementes ou indícios de uma eclosão muito mais moderna nas rimas desse Villon", escreveu Pound.
Em Villon, um universo de símbolos rotos se desfaz diante de um mundo físico cuja realidade maior é a morte. E não é à toa que o poeta desfere tantos golpes contra a usura e suas alianças com o poder. Ela é metáfora de um novo valor simbólico que já ali começa a impor sua predominância ilusória: o dinheiro produz a ilusão da perenidade, que é o contrário da vida.
Contra as ilusões simbólicas, Villon faz a linguagem falar um jogo semântico e satírico de contrários e antífrases: "Tanto se fala que se contradiz, (...) Quem mais me é veraz é quem mais mente; (...) Em quem me nega enxergo uma aliança" etc. O "Legado" é vingança; o "Testamento" é escrito por quem nada tem a deixar além da própria vida.
A antífrase expõe o mundo às avessas: "Não há mimos fora da fome,/ Nem favor que dos inimigos" ("Balada das Contraverdades"). Contra o símbolo como ilusão metafísica de sobrevivência à morte, exaltação do amor, da beleza ou da perenidade das legendas, Villon usa a linguagem como consciência realista da vida, pela paródia e a ironia, em sua materialidade carnal. Um crime é um crime. Um homem é só um homem.
Com raras exceções, o símbolo não remete mais a nada elevado, fora da vida, mas se entrecruza com outros símbolos para formá-la num jogo semântico de contradições e duplos sentidos. Está aí o maior legado de Villon à modernidade: a vida passa a ser jogo e linguagem assombrados pela morte.


Poesia
    
Autor: François Villon
Tradução e organização: Sebastião Uchoa Leite
Editora: Edusp
Quanto: R$ 38 (454 págs.)




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