São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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"A CORTE NO EXÍLIO"
Começo tropical do teatro da política

GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por causa de Napoleão, uma monarquia européia é transladada para a bela baía da Guanabara. Em 1808, espremido entre a França e a Inglaterra, o rei d. João 6º é obrigado a se exilar com 15 mil pessoas na colônia tropical.
Trata-se de algo inédito abaixo do Equador, uma corte transplantada a um cenário primitivo, tosco, rústico, selvagem. Estamos diante de um deslocamento ímpar, único e inusitado, com aparato burocrático de uma monarquia absoluta em meio à floresta dos trópicos.
Não fosse tese de doutorado, bem que poderia ter sido peça de teatro a excelente pesquisa histórica, escrita com esmero e sagacidade, do professor Jurandir Malerba sobre o exílio feliz de d. João 6º no Rio de Janeiro.
Pareceu-me que o professor Jurandir retomou a reflexão do historiador pernambucano Manuel de Oliveira Lima, que aliás tinha loucura pelo teatro e para quem a vinda de d. João ao Brasil, em vez de episódio humilhante e vexatório, foi uma jogada política genial de estadista. Filho de pai português e mãe pernambucana, Lima vai a ponto de dizer que o Brasil teria sido uma colônia mimada.
Realeza migrada. Festa permanente. O dandismo incipiente seguido ao "burburinho das ruas". Cães vadios, crianças de rua. O mau cheiro dos excrementos, sem esgoto e sem latrina. Escravos de libré. Escravos boçalóides do eito. Capoeiras. Reinóis brancos vestidos de casacas e perucas em convívio com negros e mestiços, andando seminus e sempre cantarolando algum estribilho.
Seria evidentemente forçar a barra afirmar que o Carnaval é uma invenção monárquica, todavia o feitio teatral da corte o "theatrum tropicalis" tem algo de carnavalesco e rabelaisiano, antecipando a cenografia de Oswald de Andrade vista pelos olhos dionisíacos de José Celso Martinez.
Plumas. Penachos. Pretos de pés descalços. Peixes salgados e mandioca. O transe de d. João 6º chega ao Rio ajoelhando-se e beijando um crucifixo. O processo civilizatório é indissociável do processo colonial. Essa, de resto, é a nossa sina e o nosso desafio. A europeização dos cariocas se faz simultaneamente à adaptação dos europeus às condições locais.
Essa experiência, singular na América, marcou a política e a cultura no Brasil. Marcou até hoje tanto as camadas sociais dominantes como a arraia-miúda. Os ingleses se radicaram na rua da Alfândega, e os franceses na rua do Ouvidor. A moda masculina é ditada pelo inglês. O "luxo burlesco". A "gana de pompa".
A corte trouxe refinamento na maneira de comer à mesa. Garfo e faca substituindo o comer com os dedos. O Rio introjetou as modas burguesas de Paris, de Lisboa, de Londres, de Viena. D. João 6º colocou o Brasil pela primeira vez na mídia internacional. "De entreposto colonial, o Rio tornou-se o centro das atenções do mundo, pelo menos do mundo ocidental", escreve Malerba, que dá um close analítico na rua, na casa, na mesa, na reclusão das mulheres, odaliscas presas em casa. A preferência da carne como alimento. Do amálgama entre a corte portuguesa e a elite local com grana nasceu o Estado no Brasil.
O detalhe posto em relevo pelo autor de "A Corte no Exílio" é que d. João 6º viveu e morreu como rei, ao contrário do que sucedeu com outras cabeças européias coroadas. A mídia, etiqueta e cerimonial, pertencerá à rapinagem da administração inglesa.


A Corte no Exílio
     Autor: Jurandir Malerba Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 35 (432 págs.)




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