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"A CORTE NO EXÍLIO"
Começo tropical do teatro da política
GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Por causa de Napoleão, uma
monarquia européia é transladada para a bela baía da Guanabara. Em 1808, espremido entre a
França e a Inglaterra, o rei d. João
6º é obrigado a se exilar com 15
mil pessoas na colônia tropical.
Trata-se de algo inédito abaixo
do Equador, uma corte transplantada a um cenário primitivo, tosco, rústico, selvagem. Estamos
diante de um deslocamento ímpar, único e inusitado, com aparato burocrático de uma monarquia
absoluta em meio à floresta dos
trópicos.
Não fosse tese de doutorado,
bem que poderia ter sido peça de
teatro a excelente pesquisa histórica, escrita com esmero e sagacidade, do professor Jurandir Malerba sobre o exílio feliz de d. João
6º no Rio de Janeiro.
Pareceu-me que o professor Jurandir retomou a reflexão do historiador pernambucano Manuel
de Oliveira Lima, que aliás tinha
loucura pelo teatro e para quem a
vinda de d. João ao Brasil, em vez
de episódio humilhante e vexatório, foi uma jogada política genial
de estadista. Filho de pai português e mãe pernambucana, Lima
vai a ponto de dizer que o Brasil
teria sido uma colônia mimada.
Realeza migrada. Festa permanente. O dandismo incipiente seguido ao "burburinho das ruas".
Cães vadios, crianças de rua. O
mau cheiro dos excrementos, sem
esgoto e sem latrina. Escravos de
libré. Escravos boçalóides do eito.
Capoeiras. Reinóis brancos vestidos de casacas e perucas em convívio com negros e mestiços, andando seminus e sempre cantarolando algum estribilho.
Seria evidentemente forçar a
barra afirmar que o Carnaval é
uma invenção monárquica, todavia o feitio teatral da corte o "theatrum tropicalis" tem algo de carnavalesco e rabelaisiano, antecipando a cenografia de Oswald de
Andrade vista pelos olhos dionisíacos de José Celso Martinez.
Plumas. Penachos. Pretos de
pés descalços. Peixes salgados e
mandioca. O transe de d. João 6º
chega ao Rio ajoelhando-se e beijando um crucifixo. O processo
civilizatório é indissociável do
processo colonial. Essa, de resto, é
a nossa sina e o nosso desafio. A
europeização dos cariocas se faz
simultaneamente à adaptação dos
europeus às condições locais.
Essa experiência, singular na
América, marcou a política e a
cultura no Brasil. Marcou até hoje
tanto as camadas sociais dominantes como a arraia-miúda. Os
ingleses se radicaram na rua da
Alfândega, e os franceses na rua
do Ouvidor. A moda masculina é
ditada pelo inglês. O "luxo burlesco". A "gana de pompa".
A corte trouxe refinamento na
maneira de comer à mesa. Garfo e
faca substituindo o comer com os
dedos. O Rio introjetou as modas
burguesas de Paris, de Lisboa, de
Londres, de Viena. D. João 6º colocou o Brasil pela primeira vez na
mídia internacional. "De entreposto colonial, o Rio tornou-se o
centro das atenções do mundo,
pelo menos do mundo ocidental",
escreve Malerba, que dá um close
analítico na rua, na casa, na mesa,
na reclusão das mulheres, odaliscas presas em casa. A preferência
da carne como alimento. Do
amálgama entre a corte portuguesa e a elite local com grana nasceu
o Estado no Brasil.
O detalhe posto em relevo pelo
autor de "A Corte no Exílio" é que
d. João 6º viveu e morreu como
rei, ao contrário do que sucedeu
com outras cabeças européias coroadas. A mídia, etiqueta e cerimonial, pertencerá à rapinagem
da administração inglesa.
A Corte no Exílio
Autor: Jurandir Malerba
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35 (432 págs.)
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