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Livro privilegia o divulgado no exterior
JOSÉ EDUARDO MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA
A simples leitura do título já
desperta curiosidade, tão
mais aguçada se forem consideradas a maneira do enfoque "Notas
Musicais" e a extensão histórica
nelas contidas, "do barroco ao
jazz". Contudo, penetrando no
conteúdo do livro, mais do que as
informações, ficaria a possibilidade de reflexões. E essas podem ser
multidirecionadas, destacando-se
uma sobremaneira: a nostalgia ou
o adeus às esperanças.
Durante o século 20, São Paulo
assistiria ao exercício crítico, em
variações que passariam da alta
competência à rotineira prática
do "métier", apenas. Félix de Otero (1868-1946), desde as fronteiras
dos séculos 19-20, Mário de Andrade (1893-1945), durante longo
período a partir dos anos 20, e, incrivelmente, mais de uma dezena
de articulistas e críticos durante a
década de 50, alguns dominando
na excelência a textura musical,
documentaram a vida musical da
cidade. Praticamente todos os
dias, críticos e cronistas desfilavam suas penas nos jornais de
maior circulação, revelando, nas
datas imediatas aos eventos, as
opiniões dessa recepção auditiva,
quando obras, compositores e intérpretes eram focalizados.
Todo esse prólogo poderia parecer deslocado, não fosse a presença, em todos os críticos citados
desde Otero, da chama da esperança. Nos anos 50, ilustres músicos que aqui se apresentaram receberam colunas nos jornais após
apresentações históricas. Todos
os críticos assistiam igualmente,
saliente-se, aos eventos em que jovens e maduros instrumentistas
pátrios se apresentavam, ou promissores ou consagrados compositores tinham suas obras executadas. Essa expectativa do porvir
era o estímulo seguro para o continuar a persistir, e gerações de
músicos brasileiros são tributárias dessa assertiva que apontava
desvios, mas pontuava elogios. O
crítico corria riscos, é certo, revelava coragem ao preconizar uma
carreira para o músico que despertava, demonstrava "feeling"
ao detectar o talento genuíno que
a história apenas ratificaria.
"Notas Musicais - Do Barroco
ao Jazz" é leitura agradável, de divulgação. Leve, revela informações, mas, na essência, é obra que
está escrita exatamente para o
nosso tempo, quando a necessidade de comunicação ampla e dirigida privilegia sempre o consagrado e tudo o que tenha plena
ventilação. O autor revela no prefácio que "em plena era da cultura
industrializada, faz-se necessário
acentuar o que vale a pena". E, basicamente, privilegia o ultradivulgado no exterior. Contudo Arthur
Nestrovski possui habilidades para escrever, mas essa qualidade
esbarra inúmeras vezes em armadilhas.
Livre das "amarras" que o levariam a tomar posições frente ao
ineditismo ou ao desabrochar
musical ainda virgem de posicionamento opinativo, seria possível
acreditar que a ratificação do óbvio nos curtos textos de Nestrovski permitiria a confecção de frases
de efeito, soltas, mas extremamente perigosas, a deixá-lo exposto ao menor juízo atento. É rara a crônica em que essas frases
afirmativas, "definitivas" e majestáticas não se apresentam, a revelar, sob um aspecto, a imaginação,
mencione-se, plena de idéias do
autor, mas, sob outra égide, a não-reflexão mais acurada sobre determinadas conceituações.
"Notas Musicais - Do Barroco
ao Jazz" levaria a pensar mais em
um tipo de crônica do que em crítica, essa que analisa, julga o mérito ou aponta caminhos. A obra
serve amplamente ao sistema,
pois, na essência, só os custosos
eventos musicais ou os CDs lançados por grandes gravadoras internacionais, supersacralizados
em seus conteúdos composicionais ou interpretativos, são contemplados. Em ambos, basicamente todos os personagens, vivos ou mortos, são consagrados,
inclusive os pouquíssimos brasileiros. Frise-se, figuras necessárias, mas não únicas. Ficaria a certeza da ausência dos que impulsionam, e tantas vezes na excelência, a vida musical na cidade.
A "grande" mídia de São Paulo
praticamente abandonou a missão a ela destinada, indispensável,
de observar a respiração musical
que faz viver as pequenas salas de
concerto, longe dos holofotes, onde a esperança leva ao acreditar.
Jovens, dezenas de músicos, sejam eles compositores ou intérpretes, inúmeros deles respeitados no Brasil e no exterior, estão a
produzir em todos os níveis, apesar do silêncio dessa mídia. Teimosamente, a partir da oralidade,
essa atávica maneira de comunicação, eventos que a imprensa insiste em desconhecer, têm audiência fiel, que integra o próprio
pulsar musical da cidade.
Seria talvez utópico pensar num
renascer dessa crítica que documenta o nascimento e a vida de
incontáveis músicos, registrando
desde as esperanças às ratificações? Seria igualmente possível
antever num futuro item Obras
Básicas sugeridas pelo autor -e
como podem influir no leitor menos atento- a inclusão de autores pátrios da maior competência? A música brasileira é subestimada em "Notas Musicais", com
apenas as "Bachianas" de Villa-Lobos entre mais de uma centena
de gravações.
O livro deve fazer parte da biblioteca de músicos e leigos. Será
a evidência do estágio empobrecido da mídia da cidade voltada à
música de concerto, o que ela
pensa, quem ela privilegia. Os
pósteros, sobremaneira em dissertações ou teses universitárias,
poderão julgar e analisar parcela
da crítica, da crônica e da resenha
de São Paulo por meio de "Notas
Musicais" e aprender muito das
"transições" culturais impostas
pelo sistema, nesta passagem de
milênio e de dígitos plena de ambiguidades em tempos da cultura
industrializada.
José Eduardo Martins é pianista e
professor do Departamento de
Música da USP
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