São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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Livro privilegia o divulgado no exterior

JOSÉ EDUARDO MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A simples leitura do título já desperta curiosidade, tão mais aguçada se forem consideradas a maneira do enfoque "Notas Musicais" e a extensão histórica nelas contidas, "do barroco ao jazz". Contudo, penetrando no conteúdo do livro, mais do que as informações, ficaria a possibilidade de reflexões. E essas podem ser multidirecionadas, destacando-se uma sobremaneira: a nostalgia ou o adeus às esperanças.
Durante o século 20, São Paulo assistiria ao exercício crítico, em variações que passariam da alta competência à rotineira prática do "métier", apenas. Félix de Otero (1868-1946), desde as fronteiras dos séculos 19-20, Mário de Andrade (1893-1945), durante longo período a partir dos anos 20, e, incrivelmente, mais de uma dezena de articulistas e críticos durante a década de 50, alguns dominando na excelência a textura musical, documentaram a vida musical da cidade. Praticamente todos os dias, críticos e cronistas desfilavam suas penas nos jornais de maior circulação, revelando, nas datas imediatas aos eventos, as opiniões dessa recepção auditiva, quando obras, compositores e intérpretes eram focalizados.
Todo esse prólogo poderia parecer deslocado, não fosse a presença, em todos os críticos citados desde Otero, da chama da esperança. Nos anos 50, ilustres músicos que aqui se apresentaram receberam colunas nos jornais após apresentações históricas. Todos os críticos assistiam igualmente, saliente-se, aos eventos em que jovens e maduros instrumentistas pátrios se apresentavam, ou promissores ou consagrados compositores tinham suas obras executadas. Essa expectativa do porvir era o estímulo seguro para o continuar a persistir, e gerações de músicos brasileiros são tributárias dessa assertiva que apontava desvios, mas pontuava elogios. O crítico corria riscos, é certo, revelava coragem ao preconizar uma carreira para o músico que despertava, demonstrava "feeling" ao detectar o talento genuíno que a história apenas ratificaria.
"Notas Musicais - Do Barroco ao Jazz" é leitura agradável, de divulgação. Leve, revela informações, mas, na essência, é obra que está escrita exatamente para o nosso tempo, quando a necessidade de comunicação ampla e dirigida privilegia sempre o consagrado e tudo o que tenha plena ventilação. O autor revela no prefácio que "em plena era da cultura industrializada, faz-se necessário acentuar o que vale a pena". E, basicamente, privilegia o ultradivulgado no exterior. Contudo Arthur Nestrovski possui habilidades para escrever, mas essa qualidade esbarra inúmeras vezes em armadilhas.
Livre das "amarras" que o levariam a tomar posições frente ao ineditismo ou ao desabrochar musical ainda virgem de posicionamento opinativo, seria possível acreditar que a ratificação do óbvio nos curtos textos de Nestrovski permitiria a confecção de frases de efeito, soltas, mas extremamente perigosas, a deixá-lo exposto ao menor juízo atento. É rara a crônica em que essas frases afirmativas, "definitivas" e majestáticas não se apresentam, a revelar, sob um aspecto, a imaginação, mencione-se, plena de idéias do autor, mas, sob outra égide, a não-reflexão mais acurada sobre determinadas conceituações.
"Notas Musicais - Do Barroco ao Jazz" levaria a pensar mais em um tipo de crônica do que em crítica, essa que analisa, julga o mérito ou aponta caminhos. A obra serve amplamente ao sistema, pois, na essência, só os custosos eventos musicais ou os CDs lançados por grandes gravadoras internacionais, supersacralizados em seus conteúdos composicionais ou interpretativos, são contemplados. Em ambos, basicamente todos os personagens, vivos ou mortos, são consagrados, inclusive os pouquíssimos brasileiros. Frise-se, figuras necessárias, mas não únicas. Ficaria a certeza da ausência dos que impulsionam, e tantas vezes na excelência, a vida musical na cidade.
A "grande" mídia de São Paulo praticamente abandonou a missão a ela destinada, indispensável, de observar a respiração musical que faz viver as pequenas salas de concerto, longe dos holofotes, onde a esperança leva ao acreditar. Jovens, dezenas de músicos, sejam eles compositores ou intérpretes, inúmeros deles respeitados no Brasil e no exterior, estão a produzir em todos os níveis, apesar do silêncio dessa mídia. Teimosamente, a partir da oralidade, essa atávica maneira de comunicação, eventos que a imprensa insiste em desconhecer, têm audiência fiel, que integra o próprio pulsar musical da cidade.
Seria talvez utópico pensar num renascer dessa crítica que documenta o nascimento e a vida de incontáveis músicos, registrando desde as esperanças às ratificações? Seria igualmente possível antever num futuro item Obras Básicas sugeridas pelo autor -e como podem influir no leitor menos atento- a inclusão de autores pátrios da maior competência? A música brasileira é subestimada em "Notas Musicais", com apenas as "Bachianas" de Villa-Lobos entre mais de uma centena de gravações.
O livro deve fazer parte da biblioteca de músicos e leigos. Será a evidência do estágio empobrecido da mídia da cidade voltada à música de concerto, o que ela pensa, quem ela privilegia. Os pósteros, sobremaneira em dissertações ou teses universitárias, poderão julgar e analisar parcela da crítica, da crônica e da resenha de São Paulo por meio de "Notas Musicais" e aprender muito das "transições" culturais impostas pelo sistema, nesta passagem de milênio e de dígitos plena de ambiguidades em tempos da cultura industrializada.


José Eduardo Martins é pianista e professor do Departamento de Música da USP


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