São Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2010

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CRÍTICA HISTÓRIA

Boucher traça com estilo a história do vestir

Instrutivo e interessante, livro ressalta o papel do homem na moda e o da moda na construção das sociedades


A CULTURA OCEÂNICA DE BOUCHER SOBRE ROUPAS NÃO CHEGA A AFOGAR O LEITOR VALERIA UMA ATUALIZAÇÃO DO LIVRO, A FIM DE INCLUIR O "FAST FASHION"


ALCINO LEITE NETO
EDITOR DA PUBLIFOLHA

O rei Luís 14 possuía belos cabelos cacheados, ao contrário de seu pai, Luís 13, que ficou calvo por volta dos 30.
Por isso mesmo, resistiu o quanto pode ao acessório introduzido por seu genitor, a peruca, que desde meados do século 17 vinha conquistando o gosto da nobreza.
Mas o apelo da moda foi mais forte e, em 1672, Luís 14 mandou raspar todos os seus cachos e adotou de vez as perucas de "cabelos vivos".
A decisão real consagrou o acessório, que se tornou item obrigatório do look masculino entre os notáveis da corte e da Igreja.
A moda da peruca seguiu até o final do século 17 e representa um momento emblemático da relação apaixonada que os homens mantiveram com as roupas.
Sim, os homens. Desde os primórdios da história até o século 18, seriam eles, mais ainda que as mulheres, que cultivariam o gosto por guarda-roupas supervistosos e luxuosos -ensina o livro "História do Vestuário no Ocidente", de François Boucher, uma obra ambiciosa de 480 páginas e 1.064 ilustrações, que descreve a criação e o uso das roupas desde a Pré-História até o século 20.
Pode parecer desmesurado começar essa história desde tão longe, mas é já na Pré-História que ocorrem os primeiros esforços de manufatura de roupas, sobretudo a partir do Mesolítico.
As peles de animais eram costuradas com agulhas perfuradas feitas de ossos e fios extraídos de nervos de animais ou das crinas e da cauda dos cavalos.
Também de ossos eram feitos os teares, onde se produziam pequenas peças de tecidos, depois costuradas umas às outras.

IDADE MODERNA
Os capítulos que abordam as culturas anteriores à formação da Europa se ressentem da escassez de exemplares de roupas, iconografias e bibliografias, mas isso não desencoraja o autor a avançar pelas civilizações do Antigo Oriente (como os sumérios), do Mediterrâneo (como os egípcios, gregos e etruscos) e dos povos europeus de antes da conquista romana (como celtas e gauleses).
O livro ganha mais fôlego a partir do Renascimento, e os capítulos dedicados aos séculos 15 a 19 são excelentes, examinando tanto a história que se processa nos centros vitais da moda -dependendo do período: Itália, Espanha, Holanda, França e Inglaterra-, como nos países periféricos.
O autor também se atém à roupa militar, ao figurino teatral, ao traje infantil, às invenções técnicas e aos desenvolvimentos da indústria têxtil e de confecções.
Os três capítulos finais dedicados ao século 20 são corretos, mas sem o brilho dos anteriores, e têm o defeito de estarem voltados em demasia à moda feita na França.
Além disso, valeria uma atualização do livro, a fim de incluir a revolução atual do "fast fashion" -expressão que não consta da obra- e as mudanças ocasionadas pelas novas tecnologias.
A cultura oceânica de Boucher (e sua equipe) a respeito das roupas não chega a afogar o leitor. Ele narra os fatos com clareza e método.
Assim, acompanhamos como uma grande aventura cultural as mudanças que levam à difusão dos trajes longos a partir do enraizamento do cristianismo na Europa e das Cruzadas -tendência duradoura, que só se extinguirá com o Renascimento.
Ou o esforço sucessivo das nobrezas para garantir, desde o século 16, seus privilégios com relação aos trajes, por meio de "editos suntuários", proibições de determinadas cores e modelos.

GEOPOLÍTICA
As modas também seguem as linhas de força da geopolítica europeia, das guerras comerciais e da industrialização dos países.
O século 16, por exemplo, terá na Espanha o seu principal foco irradiador. "Nem os bufões do Escorial usam cores gritantes", escreveu um autor da época sobre a sobriedade da corte espanhola, que difundirá a "moda do preto" por toda a Europa. Para os que lidam com moda, seja no âmbito acadêmico, seja no da criação de roupas, "História do Vestuário no Ocidente" é obrigatório.
Para as demais pessoas, é um trabalho instrutivo e de leitura muito interessante, que tira as roupas do submundo da pesquisa historiográfica, demonstrando o quanto elas foram (e são) relevantes para a construção das sociedades.
A quantidade de informações, curiosidades e mesmo anedotas contidas no livro incitaria qualquer resenhista a escrever uma crítica infindável, pelo puro prazer de recontá-las ao leitor. Mas voltemos aos homens.
Já na Pré-História, diz o autor, eles se enfeitavam mais que as mulheres. E até o Setecentos, os homens serão as "vítimas da moda" por excelência, exigindo roupas bem mais luxuosas do que as das mulheres, que primavam pela sobriedade. A Revolução Francesa (1789) selará de vez o fim da prevalência do gosto masculino sobre as roupas.

"PALETOT"
A moda dândi, surgida na Inglaterra e capitaneada por Georges "Beau" Brummel (1778-1840), vai modelar o novo estilo. Introduz uma elegância rigorosa e fria, uma "simplicidade estudada", que influenciará o modo de vestir dos homens até pelo menos os anos 1960, a era "Mad Men".
A praticidade também começa a tomar conta do guarda-roupa masculino, apesar da resistência da tradição. O "paletot" (paletó), que surgiu no início do século 19, foi duramente condenado. Sobre essa peça mais prática, que viria a substituir a casaca, um crítico escreveu: "Ultraje ao bom gosto, bom no máximo para ir ver seus cavalos na estrebaria".
O terno ("complet") -combinação de paletó, calça e colete do mesmo tecido- e o smoking foram igualmente marginalizados. O primeiro, que apareceu por volta de 1870, será considerado até o final do século 19 um simples "negligé", ou seja, uma roupa que se deveria usar apenas pela manhã, no campo ou em viagens.
O smoking, que data dos anos 1880, usado por jogadores cansados de portar a casaca a noite inteira, só será admitido em público depois de 1910.
E as mulheres? É na segunda metade do século 18 que suas roupas começam verdadeiramente a se diversificar.
Nessa época, surgem também as primeiras publicações de moda e os primeiros criadores, como Sarrazin e Rose Bertin -à qual se atribui parte da culpa pelo "fa- shion descontrol" de Maria Antonieta. Mas a rainha francesa não foi a única garota louca por roupas: conta-se que a czarina Elizaveta, filha de Pedro, o Grande, jamais repetia o mesmo traje e acumulou 15 mil vestidos.

HISTÓRIA DO VESTUÁRIO NO OCIDENTE

AUTOR François Boucher
TRADUÇÃO André Telles
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 165 (480 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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