São Paulo, Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2000


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MARCELO COELHO
O século 21 será o dos hedonistas "sem-rosto"

São sempre difíceis de fazer os programas de TV dedicados à retrospectiva do ano que passou. Que dizer, então, das retrospectivas do século? Vejo, na televisão, tudo se suceder em ritmo de cinema mudo: Einstein e Hitler, Freud e Beatles se entrechocam de modo cômico, num desencontro de pastelões.
De alguma maneira -e talvez isso seja uma característica especial do século 20-, o passado adquire ares de comédia para nós. Imagino que o século 19 não se relacionava assim com seus antecessores; havia algo de épico, havia alguma herança no sacrifício dos anos que tombavam em prol de nosso apogeu burguês.
O historiador Eric Hobsbawn cunhou, com sucesso, a fórmula do "breve século 20" -um período que vai apenas de 1918 a 1989, do fim da Primeira Guerra à queda do Muro de Berlim. Por mais exata que seja essa caracterização, há no êxito que obteve um quê de suspeito. Trata-se de abreviar as coisas; trata-se de passar rapidamente por uma experiência que foi de pesadelo -assim, quando acordamos, o sonho terrível que tivemos se resume e se condensa em poucas imagens.
Que imagens, afinal, guardaremos do século 20? Dispensando as efemeridades televisivas, creio que duas: a das multidões saudando Hitler e a do solitário homem que pisou na Lua. São, pelo menos, as duas imagens que rejeitam a impressão de comicidade que há nos primeiros vôos de avião, nos biquínis de Brigitte Bardot, nos automóveis de 1910 e nos liquidificadores de 1950.
Há outra cena crucial: o cogumelo de Hiroshima. Mas não há, nesse símbolo do poder e da brutalidade da ciência, uma presença do ser humano, tal como a que viemos a conhecer no século 20 -entre outros, o século do culto à personalidade. Alguém se lembra do soldado que lançou a bomba? O século 20 teve rostos. Acho que o século 21 não os terá.
Talvez seja esse o significado secreto da renúncia de Boris Ieltsin, na virada do ano. Quis ser a última personalidade do século. O futuro, ao que tudo indica, será entregue a sombras, a espectros. Preferíveis, de qualquer modo (espero) a Hitler, a Mao, a Fidel Castro.
O assustador, neste século, não foi propriamente a "rebelião das massas" de que falava Ortega y Gasset, mas o fato de que essas massas tenham encontrado, em personalidades individuais, seu meio de expressão.
O século 20 foi um século em que se cultuou a pessoa; em que qualquer canalha ou psicopata reeditou o mito cristão do Deus encarnado. É como se a promiscuidade imaginária oferecida pelo avanço dos meios de comunicação estimulasse as idiossincrasias, as loucuras, a "força" de cada líder.
O anonimato geral estimulou a cretinice heróica de Mussolini, a austeridade sanguinária de Franco, os massacres triunfais de Stálin, a missão abjeta de Hitler, a radiosa violência de Mao, as inocências assustadoras de Reagan.
Monstros. Em todos, funcionou o mecanismo da projeção. O homem do século 20 deixou de acreditar em abstrações como a Pátria, a Família, Deus, o Progresso, a Ciência. Passou a acreditar nos atores que matraqueavam esse palavrório.
Foi o século em que a forma venceu o conteúdo. Daí sua aparência cômica: Hitler e Chaplin, visualmente, se parecem.
As conquistas da ciência no final de século apontam para um mundo sem rosto. O que há de mais anônimo (e individual) do que a espiral do DNA? Não há mais expedições tripuladas a outros planetas: aposta-se mais em robôs e telescópios espaciais. A particularidade individual torna-se assunto da química ou da psicanálise; o "eu", por ser raro, tornou-se assunto de idolatrias.
A banalidade do Bem -John Lennon, Padre Marcelo, Lady Di- compete com a banalidade do Mal -segundo a fórmula famosa de Hannah Arendt- numa substituição frenética e mentirosa daquilo que era uma promessa da democracia: a realização livre das vocações individuais.
O século 20 talvez possa ser entendido segundo essa chave, a do medo de cada indivíduo diante do que lhe foi prometido pela técnica e pela democracia. Tornaram o cidadão comum capaz de tudo; e inculcaram-lhe uma total banalidade, a convicção de sua completa impotência. Ele se agarrou à primeira estupidez surgida diante de seus olhos.
O século 21 não promete coisa melhor. Exausto de entregar sua própria personalidade a outros, o indivíduo ocidental trata de convencer-se de que é feliz por sua própria conta. Despolitiza-se. Recita para si mesmo os mantras de Paulo Coelho e do formulário de entrada na Internet, julgando-se realizado e cheio de boas intenções. Sua bondade, prevejo, há de ser insensível, automática, desumana.


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