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MARCELO COELHO
O século 21 será o dos hedonistas "sem-rosto"
São sempre difíceis de fazer os
programas de TV dedicados à retrospectiva do ano que passou.
Que dizer, então, das retrospectivas do século? Vejo, na televisão,
tudo se suceder em ritmo de cinema mudo: Einstein e Hitler, Freud
e Beatles se entrechocam de modo
cômico, num desencontro de pastelões.
De alguma maneira -e talvez
isso seja uma característica especial do século 20-, o passado adquire ares de comédia para nós.
Imagino que o século 19 não se relacionava assim com seus antecessores; havia algo de épico, havia
alguma herança no sacrifício dos
anos que tombavam em prol de
nosso apogeu burguês.
O historiador Eric Hobsbawn
cunhou, com sucesso, a fórmula
do "breve século 20" -um período que vai apenas de 1918 a 1989,
do fim da Primeira Guerra à queda do Muro de Berlim. Por mais
exata que seja essa caracterização, há no êxito que obteve um
quê de suspeito. Trata-se de abreviar as coisas; trata-se de passar
rapidamente por uma experiência que foi de pesadelo -assim,
quando acordamos, o sonho terrível que tivemos se resume e se condensa em poucas imagens.
Que imagens, afinal, guardaremos do século 20? Dispensando as
efemeridades televisivas, creio que
duas: a das multidões saudando
Hitler e a do solitário homem que
pisou na Lua. São, pelo menos, as
duas imagens que rejeitam a impressão de comicidade que há nos
primeiros vôos de avião, nos biquínis de Brigitte Bardot, nos automóveis de 1910 e nos liquidificadores de 1950.
Há outra cena crucial: o cogumelo de Hiroshima. Mas não há,
nesse símbolo do poder e da brutalidade da ciência, uma presença
do ser humano, tal como a que
viemos a conhecer no século 20
-entre outros, o século do culto à
personalidade. Alguém se lembra
do soldado que lançou a bomba?
O século 20 teve rostos. Acho que o
século 21 não os terá.
Talvez seja esse o significado secreto da renúncia de Boris Ieltsin,
na virada do ano. Quis ser a última personalidade do século. O futuro, ao que tudo indica, será entregue a sombras, a espectros. Preferíveis, de qualquer modo (espero) a Hitler, a Mao, a Fidel Castro.
O assustador, neste século, não
foi propriamente a "rebelião das
massas" de que falava Ortega y
Gasset, mas o fato de que essas
massas tenham encontrado, em
personalidades individuais, seu
meio de expressão.
O século 20 foi um século em que
se cultuou a pessoa; em que qualquer canalha ou psicopata reeditou o mito cristão do Deus encarnado. É como se a promiscuidade
imaginária oferecida pelo avanço
dos meios de comunicação estimulasse as idiossincrasias, as loucuras, a "força" de cada líder.
O anonimato geral estimulou a
cretinice heróica de Mussolini, a
austeridade sanguinária de Franco, os massacres triunfais de Stálin, a missão abjeta de Hitler, a radiosa violência de Mao, as inocências assustadoras de Reagan.
Monstros. Em todos, funcionou
o mecanismo da projeção. O homem do século 20 deixou de acreditar em abstrações como a Pátria, a Família, Deus, o Progresso,
a Ciência. Passou a acreditar nos
atores que matraqueavam esse
palavrório.
Foi o século em que a forma
venceu o conteúdo. Daí sua aparência cômica: Hitler e Chaplin,
visualmente, se parecem.
As conquistas da ciência no final de século apontam para um
mundo sem rosto. O que há de
mais anônimo (e individual) do
que a espiral do DNA? Não há
mais expedições tripuladas a outros planetas: aposta-se mais em
robôs e telescópios espaciais. A
particularidade individual torna-se assunto da química ou da psicanálise; o "eu", por ser raro, tornou-se assunto de idolatrias.
A banalidade do Bem -John
Lennon, Padre Marcelo, Lady
Di- compete com a banalidade
do Mal -segundo a fórmula famosa de Hannah Arendt- numa
substituição frenética e mentirosa
daquilo que era uma promessa da
democracia: a realização livre das
vocações individuais.
O século 20 talvez possa ser entendido segundo essa chave, a do
medo de cada indivíduo diante do
que lhe foi prometido pela técnica
e pela democracia. Tornaram o
cidadão comum capaz de tudo; e
inculcaram-lhe uma total banalidade, a convicção de sua completa impotência. Ele se agarrou à
primeira estupidez surgida diante
de seus olhos.
O século 21 não promete coisa
melhor. Exausto de entregar sua
própria personalidade a outros, o
indivíduo ocidental trata de convencer-se de que é feliz por sua
própria conta. Despolitiza-se. Recita para si mesmo os mantras de
Paulo Coelho e do formulário de
entrada na Internet, julgando-se
realizado e cheio de boas intenções. Sua bondade, prevejo, há de
ser insensível, automática, desumana.
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