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Escritora francesa Yasmina Traboulsi ganha prêmio de primeiro romance com história ambientada no Brasil de hoje
Literatura do Brésil
FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS
O Brasil tem se distinguido, com
uma certa constância, como tema
de inspiração para a pena de escritores francófonos. Em 2001,
Jean-Cristophe Ruffin foi laureado com o Prêmio Goncourt, o
mais importante da literatura
francesa, pelo romance "Vermelho Brasil", ambientado no país
do século 17. Neste ano, foi a vez
da jovem Yasmina Traboulsi, 28,
receber na França o Prix du Premier Roman 2003 por "Les Enfants de la Place" (As Crianças da
Praça), uma história tramada no
Brasil contemporâneo.
Nascida na França de mãe brasileira e pai libanês, Traboulsi debutou sua "aventura literária", como ela diz, por acaso: ao retornar
de uma viagem à Bahia, começou
a escrever para "matar as saudades do Brasil". O que era para ser
um remédio contra a nostalgia
acabou superado pela força das
palavras. A jovem escritora mostrou o resultado de seus esforços a
uma amiga e inscreveu o texto
num concurso literário. "Um dia,
recebi um telefonema anunciando que havia ganho um prêmio",
diz à Folha, acomodada numa pequena sala da sede da sua editora
parisiense, na rua de Condé.
Seu conto premiado "Maria
Aparecida" foi o ponto de partida
para uma obra de maior fôlego e,
reescrito, se transformou no primeiro capítulo de seu primeiro
romance. "Les Enfants de la Place" está distante do Brasil do almirante Villegagnon descrito por
Ruffin.
Os personagens de Traboulsi vivem suas desventuras no Brasil de
hoje. Um a um, eles são apresentados ao leitor: Maria Aparecida,
rainha do Pelourinho; Pipoca, pipoqueiro, diabético e analfabeto;
Zé e Manuel, adolescentes, amantes e soropositivos; Gringa, a estrangeira; Sérgio, vendedor de
lenços e bombons; Denílson, jovem padre idealista; Otávio, escritor malsucedido e alcoólatra; Sonia, prostituta de coração mole ou
o Dottor Augusto, aristocrata comunista. Da Bahia, passando por
Rio e São Paulo, os protagonistas
trilham tortuosos caminhos que
os conduzem a amargos destinos,
entre a prostituição, o tráfico de
drogas e a dura realidade das favelas e dos presídios.
Para criar a trama, a autora realizou um trabalho de pesquisa,
aproximou-se de um jovem traficante de 22 anos e visitou a Casa
de Detenção do Carandiru. "Há
coisas no Brasil que me incomodam, me chocam, a desigualdade
me revolta. Disseram que meu livro é muito violento. Mas não se
trata de uma reportagem, e sim de
um romance", diz. Nesse mundo
que a assusta, Traboulsi inclui as
seitas religiosas, como a Igreja
Universal, ou o poder da TV.
"Fico indignada com os programas nos quais a atração é o dinheiro e com o abuso da violência
na TV", diz. Traboulsi consumiu
um ano para finalizar o livro e diz
ter se impregnado do universo
carcerário. "Senti-me quase numa prisão. O mais difícil foi saber
quando o livro estava pronto."
Obcecada pela justeza das palavras, sua imersão na criação de
seu primeiro romance também
lhe rendeu frutos. Além de premiado, o livro recebeu uma elogiosa acolhida por parte da crítica
francesa. "Yasmina Traboulsi
considera insuportável caminhar
numa terra em que a metade dos
homens morre de fome, enquanto a outra faz dieta. Mas, como de
nada serve ficar repetindo essa
realidade, a autora recicla numa
bela e densa linguagem suas vertigens geopolíticas", escreveu Anne
Crignon, no semanário "Nouvel
Observateur".
"Ignora-se se todos esses horrores são verídicos, mas a autora
tem razão: é bem isso que a televisão mostra aos brasileiros, e é isso
que conta", apontou Jean Soublin, no jornal "Le Monde". "Yasmina Traboulsi conseguiu montar um conjunto de histórias que,
ao longo das páginas, se interagem, sem jamais revelar incoerências. Prova de que um plano
secreto preside e guia esse primeiro romance. O talento dessa jovem assimilou perfeitamente todas as culturas de seus dois países,
o Líbano e o Brasil", escreveu
Françoise Xenakis, no periódico
"Le Figaro".
Convidada para participar dos
principais programas literários
franceses no rádio e na TV, Traboulsi se diz ao mesmo tempo lisonjeada e constrangida com o repentino sucesso: "Não esperava
por isso. E o prazer que me dá não
é porque falam de mim, mas do
Brasil. E não é do Brasil do futebol
e do Carnaval". Sua metade brasileira recusa os clichês sobre o país
constantemente evocados no exterior. "Há mais coisas no Brasil
do que futebol, samba, mulheres e
Carnaval. E é uma pena que não
sejam conhecidos como se deveria o cinema, a literatura e mesmo
a música brasileira."
Entre suas influências e preferências tropicais, estão o compositor Chico Buarque, "um gênio",
Raduan Nassar, Erico e Luis Fernando Verissimo, Patricia Melo,
João Ubaldo Ribeiro e seu ídolo
Jorge Amado.
Traboulsi reside em Londres,
onde trabalha como documentalista e professora de francês. Ela
nunca morou no Brasil, mas,
sempre que pode, dá uma escapada ao Rio, em Teresópolis, para o
aconchego da casa dos avós maternos. Seu português de charmoso sotaque contrasta com a gestualidade brasileira no expressar.
Traboulsi também fala e escreve
em árabe e, mesmo tendo vivido a
maior parte do tempo na França,
confessa nunca ter se sentido
francesa. Em meio a essa miscelânea de origens e culturas, ela afirma não poder permanecer muito
tempo longe do Brasil. Mas é dubitativa sobre a eventualidade de
seu livro ser lançado no país: "No
fundo, claro que gostaria, mas é
algo que me intimida, pois é o
olhar de uma estrangeira, e não
penso que acrescente algo de novo sobre o que se passa no Brasil".
A escrita, no entanto, não aplacou sua saudade do país. Na sua
rotina londrina, são os odores do
Brasil que mais lhe fazem falta:
"Nenhum em especial, mas os
odores da rua, que estão no ar. E
os semblantes das pessoas".
LES ENFANTS DE LA PLACE. Autora:
Yasmina Traboulsi. Editora: Mercure de
France. Quanto: 15 (163 págs.), cerca
de R$ 55. Onde encomendar:
www.amazon.fr.
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