São Paulo, segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Escritora francesa Yasmina Traboulsi ganha prêmio de primeiro romance com história ambientada no Brasil de hoje

Literatura do Brésil

FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS

O Brasil tem se distinguido, com uma certa constância, como tema de inspiração para a pena de escritores francófonos. Em 2001, Jean-Cristophe Ruffin foi laureado com o Prêmio Goncourt, o mais importante da literatura francesa, pelo romance "Vermelho Brasil", ambientado no país do século 17. Neste ano, foi a vez da jovem Yasmina Traboulsi, 28, receber na França o Prix du Premier Roman 2003 por "Les Enfants de la Place" (As Crianças da Praça), uma história tramada no Brasil contemporâneo.
Nascida na França de mãe brasileira e pai libanês, Traboulsi debutou sua "aventura literária", como ela diz, por acaso: ao retornar de uma viagem à Bahia, começou a escrever para "matar as saudades do Brasil". O que era para ser um remédio contra a nostalgia acabou superado pela força das palavras. A jovem escritora mostrou o resultado de seus esforços a uma amiga e inscreveu o texto num concurso literário. "Um dia, recebi um telefonema anunciando que havia ganho um prêmio", diz à Folha, acomodada numa pequena sala da sede da sua editora parisiense, na rua de Condé.
Seu conto premiado "Maria Aparecida" foi o ponto de partida para uma obra de maior fôlego e, reescrito, se transformou no primeiro capítulo de seu primeiro romance. "Les Enfants de la Place" está distante do Brasil do almirante Villegagnon descrito por Ruffin.
Os personagens de Traboulsi vivem suas desventuras no Brasil de hoje. Um a um, eles são apresentados ao leitor: Maria Aparecida, rainha do Pelourinho; Pipoca, pipoqueiro, diabético e analfabeto; Zé e Manuel, adolescentes, amantes e soropositivos; Gringa, a estrangeira; Sérgio, vendedor de lenços e bombons; Denílson, jovem padre idealista; Otávio, escritor malsucedido e alcoólatra; Sonia, prostituta de coração mole ou o Dottor Augusto, aristocrata comunista. Da Bahia, passando por Rio e São Paulo, os protagonistas trilham tortuosos caminhos que os conduzem a amargos destinos, entre a prostituição, o tráfico de drogas e a dura realidade das favelas e dos presídios.
Para criar a trama, a autora realizou um trabalho de pesquisa, aproximou-se de um jovem traficante de 22 anos e visitou a Casa de Detenção do Carandiru. "Há coisas no Brasil que me incomodam, me chocam, a desigualdade me revolta. Disseram que meu livro é muito violento. Mas não se trata de uma reportagem, e sim de um romance", diz. Nesse mundo que a assusta, Traboulsi inclui as seitas religiosas, como a Igreja Universal, ou o poder da TV.
"Fico indignada com os programas nos quais a atração é o dinheiro e com o abuso da violência na TV", diz. Traboulsi consumiu um ano para finalizar o livro e diz ter se impregnado do universo carcerário. "Senti-me quase numa prisão. O mais difícil foi saber quando o livro estava pronto."
Obcecada pela justeza das palavras, sua imersão na criação de seu primeiro romance também lhe rendeu frutos. Além de premiado, o livro recebeu uma elogiosa acolhida por parte da crítica francesa. "Yasmina Traboulsi considera insuportável caminhar numa terra em que a metade dos homens morre de fome, enquanto a outra faz dieta. Mas, como de nada serve ficar repetindo essa realidade, a autora recicla numa bela e densa linguagem suas vertigens geopolíticas", escreveu Anne Crignon, no semanário "Nouvel Observateur".
"Ignora-se se todos esses horrores são verídicos, mas a autora tem razão: é bem isso que a televisão mostra aos brasileiros, e é isso que conta", apontou Jean Soublin, no jornal "Le Monde". "Yasmina Traboulsi conseguiu montar um conjunto de histórias que, ao longo das páginas, se interagem, sem jamais revelar incoerências. Prova de que um plano secreto preside e guia esse primeiro romance. O talento dessa jovem assimilou perfeitamente todas as culturas de seus dois países, o Líbano e o Brasil", escreveu Françoise Xenakis, no periódico "Le Figaro".
Convidada para participar dos principais programas literários franceses no rádio e na TV, Traboulsi se diz ao mesmo tempo lisonjeada e constrangida com o repentino sucesso: "Não esperava por isso. E o prazer que me dá não é porque falam de mim, mas do Brasil. E não é do Brasil do futebol e do Carnaval". Sua metade brasileira recusa os clichês sobre o país constantemente evocados no exterior. "Há mais coisas no Brasil do que futebol, samba, mulheres e Carnaval. E é uma pena que não sejam conhecidos como se deveria o cinema, a literatura e mesmo a música brasileira."
Entre suas influências e preferências tropicais, estão o compositor Chico Buarque, "um gênio", Raduan Nassar, Erico e Luis Fernando Verissimo, Patricia Melo, João Ubaldo Ribeiro e seu ídolo Jorge Amado.
Traboulsi reside em Londres, onde trabalha como documentalista e professora de francês. Ela nunca morou no Brasil, mas, sempre que pode, dá uma escapada ao Rio, em Teresópolis, para o aconchego da casa dos avós maternos. Seu português de charmoso sotaque contrasta com a gestualidade brasileira no expressar.
Traboulsi também fala e escreve em árabe e, mesmo tendo vivido a maior parte do tempo na França, confessa nunca ter se sentido francesa. Em meio a essa miscelânea de origens e culturas, ela afirma não poder permanecer muito tempo longe do Brasil. Mas é dubitativa sobre a eventualidade de seu livro ser lançado no país: "No fundo, claro que gostaria, mas é algo que me intimida, pois é o olhar de uma estrangeira, e não penso que acrescente algo de novo sobre o que se passa no Brasil".
A escrita, no entanto, não aplacou sua saudade do país. Na sua rotina londrina, são os odores do Brasil que mais lhe fazem falta: "Nenhum em especial, mas os odores da rua, que estão no ar. E os semblantes das pessoas".


LES ENFANTS DE LA PLACE. Autora: Yasmina Traboulsi. Editora: Mercure de France. Quanto: 15 (163 págs.), cerca de R$ 55. Onde encomendar: www.amazon.fr.


Texto Anterior: Nelson Ascher: As calamidades de 2003
Próximo Texto: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.