|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
As calamidades de 2003
2003, como se previra, foi um
ano terrível. Países ricos e arrogantes, desafiando regras internacionais, tentaram impor sua
vontade aos menores se bem que
estes tenham não raro resistido
heroicamente. Lideranças que
outrora apoiavam a unificação
européia procuram agora prejudicá-la. O multilateralismo desagradou aos poderosos. A agressão
criminosa e o militarismo desvairado continuaram fazendo vítimas aos milhares, sobretudo entre os muçulmanos.
Instituições como a ONU foram
desrespeitadas como nunca antes.
Inúmeros meios de comunicação,
por diversos motivos escusos e cedendo não raro à pressão governamental, desinformaram o público e, no entretempo, veículos
ou jornalistas que disseram a verdade pagaram um preço alto. Elites encasteladas no poder resolveram ditar, de cima para baixo,
suas leis a centenas de milhões de
cidadãos livres.
Vigorava, na União Européia,
um pacto de estabilidade que não
permitia a membro algum ultrapassar 3% de déficit em seus respectivos orçamentos. Os sócios
minoritários, como Portugal ou a
Irlanda, que o rompessem expunham-se a duras sanções. Tão logo a Alemanha e a França o fizeram, elas, seguindo o consagrado
princípio dos dois pesos e duas
medidas, não sofreram nenhuma
penalidade.
Embora a mesma dupla tivesse
resolvido, sem consultar seus parceiros, não só se opor à invasão
norte-americana do Iraque mas
também impedi-la, quando os governos europeus a apoiaram majoritariamente ou se mantiveram
neutros, os franco-alemães se indignaram com tamanha manifestação de multilateralismo.
Tampouco se viu com bons
olhos a decisão tomada democraticamente pelo povo sueco de,
contrariando os desejos de seu governo e suas classes dominantes,
não aderir ao euro.
Quanto à nova constituição européia, um documento bizantino
que, elaborado a portas fechadas,
destina-se a concentrar autoridade nas mãos da burocracia de
Bruxelas, assim que a Espanha e
a Polônia se valeram de seu direito soberano de rejeitá-la, o casal
galo-germânico, prometendo puni-los economicamente, começou
a falar em dividir a Europa em
um núcleo e uma periferia que
funcionariam, cada qual, de modo diferente.
Malgrado não ter conseguido
durante o ano inteiro perpetrar
um único atentado importante
seja nos Estados Unidos, seja nas
metrópoles ocidentais, o islamismo radical seguiu massacrando
gente em lugares como a Turquia,
a Argélia, o Marrocos e a Arábia
Saudita. O grosso dos mortos e feridos se compôs de muçulmanos.
Até no Iraque, os fundamentalistas, percebendo que não infligiriam baixas significativas à coalizão que libertara o país, voltaram-se contra a população local,
bombardeando mesquitas e ônibus, restaurantes e delegacias. Para culminar, no pior ataque a
uma organização internacional,
eles explodiram o quartel-general
da ONU em Bagdá, eliminando
vários de seus melhores quadros.
De acordo com o jornalista britânico William Shawcross, amigo
pessoal de Sérgio Vieira de Melo,
o diplomata brasileiro assassinado estava na lista negra dos fanáticos desde que ajudara o Timor
Leste a consolidar sua independência.
Durante as três semanas que as
tropas anglo-americanas levaram para depor Saddam Hussein,
como a França tivesse fechado
posição em favor de seu antigo
cliente, a imprensa nacional, do
"Libération" de esquerda ao "Le
Figaro" de direita, passando pelo
"Le Monde" centrista, não satisfeita em opinar nas páginas editorialísticas, retocou aqui e ali os
fatos, retratando a bem-sucedida
campanha-relâmpago como uma
sucessão de reveses. Por que Bagdá caiu é algo que seus leitores
não entenderam até hoje.
Alain Hertoghe, jornalista do
diário católico "La Croix", explicou em seu livro "La Guerre à Outrances: Comment la Presse nous
a Désinformés sur l'Irak" (Guerra
sem Limites : Como a Imprensa
nos Desinformou sobre o Iraque)
que a cobertura ficara aquém das
exigências mínimas de objetividade. E foi demitido. Quase nenhum de seus colegas saiu em sua
defesa, e tanto o fato como o livro
que o desencadeou mereceram
mais comentários em Londres e
Nova York do que em Paris.
Não é a toa, portanto, que, em
dezembro, uma capa do "L"Express", estampando uma foto de
George Bush, dizia: "O Homem
que Arruinou Nosso Ano". Nosso
de quem? A imprensa tem às vezes um quê de profético, pois, enquanto a revista ainda estava nas
bancas, o Exército do homem em
questão capturou o ditador iraquiano.
Tratou-se, enfim, de um ano
que decepcionou a muitos. Aconteça o que acontecer amanhã, esses foram, desde a década de 70,
quando a vertente política do Islã
iniciou sua metástase, os 12 meses
mais traumáticos para os jihadistas. Seus inimigos conquistaram e
mantêm ocupados dois países
centrais para a causa deles com
perdas que não chegam a um centésimo das sofridas na Indochina.
A guerra de Arafat contra Israel
tem rendido resultados decrescentes : o número de israelenses
mortos caiu pela metade em relação a 2002. O autocrata da Líbia
se rendeu sem dar um tiro, e o de
Damasco sabe que está cercado.
O projeto de converter a União
Européia em rival estratégico dos
americanos, se não de todo enterrado, já recebeu oficialmente a
extrema-unção. E, conforme, por
um lado, a esquerda autoritária
amargava um 1989 agravado e os
motores da economia continental
se enguiçavam, por outro, o desemprego caiu na Inglaterra, e os
EUA cresceram em ritmo acelerado, tornando a vitória eleitoral do
New Labour e dos republicanos
cada vez mais provável.
Que ano! Só resta apertar o cinto de segurança e preparar-se para o novo.
Texto Anterior: Quadrinhos: Glauco leva seu "bauzão" para as bancas Próximo Texto: Literatura do Brésil Índice
|