São Paulo, segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

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NELSON ASCHER

As calamidades de 2003

2003, como se previra, foi um ano terrível. Países ricos e arrogantes, desafiando regras internacionais, tentaram impor sua vontade aos menores se bem que estes tenham não raro resistido heroicamente. Lideranças que outrora apoiavam a unificação européia procuram agora prejudicá-la. O multilateralismo desagradou aos poderosos. A agressão criminosa e o militarismo desvairado continuaram fazendo vítimas aos milhares, sobretudo entre os muçulmanos.
Instituições como a ONU foram desrespeitadas como nunca antes. Inúmeros meios de comunicação, por diversos motivos escusos e cedendo não raro à pressão governamental, desinformaram o público e, no entretempo, veículos ou jornalistas que disseram a verdade pagaram um preço alto. Elites encasteladas no poder resolveram ditar, de cima para baixo, suas leis a centenas de milhões de cidadãos livres.
Vigorava, na União Européia, um pacto de estabilidade que não permitia a membro algum ultrapassar 3% de déficit em seus respectivos orçamentos. Os sócios minoritários, como Portugal ou a Irlanda, que o rompessem expunham-se a duras sanções. Tão logo a Alemanha e a França o fizeram, elas, seguindo o consagrado princípio dos dois pesos e duas medidas, não sofreram nenhuma penalidade.
Embora a mesma dupla tivesse resolvido, sem consultar seus parceiros, não só se opor à invasão norte-americana do Iraque mas também impedi-la, quando os governos europeus a apoiaram majoritariamente ou se mantiveram neutros, os franco-alemães se indignaram com tamanha manifestação de multilateralismo.
Tampouco se viu com bons olhos a decisão tomada democraticamente pelo povo sueco de, contrariando os desejos de seu governo e suas classes dominantes, não aderir ao euro.
Quanto à nova constituição européia, um documento bizantino que, elaborado a portas fechadas, destina-se a concentrar autoridade nas mãos da burocracia de Bruxelas, assim que a Espanha e a Polônia se valeram de seu direito soberano de rejeitá-la, o casal galo-germânico, prometendo puni-los economicamente, começou a falar em dividir a Europa em um núcleo e uma periferia que funcionariam, cada qual, de modo diferente.
Malgrado não ter conseguido durante o ano inteiro perpetrar um único atentado importante seja nos Estados Unidos, seja nas metrópoles ocidentais, o islamismo radical seguiu massacrando gente em lugares como a Turquia, a Argélia, o Marrocos e a Arábia Saudita. O grosso dos mortos e feridos se compôs de muçulmanos.
Até no Iraque, os fundamentalistas, percebendo que não infligiriam baixas significativas à coalizão que libertara o país, voltaram-se contra a população local, bombardeando mesquitas e ônibus, restaurantes e delegacias. Para culminar, no pior ataque a uma organização internacional, eles explodiram o quartel-general da ONU em Bagdá, eliminando vários de seus melhores quadros.
De acordo com o jornalista britânico William Shawcross, amigo pessoal de Sérgio Vieira de Melo, o diplomata brasileiro assassinado estava na lista negra dos fanáticos desde que ajudara o Timor Leste a consolidar sua independência.
Durante as três semanas que as tropas anglo-americanas levaram para depor Saddam Hussein, como a França tivesse fechado posição em favor de seu antigo cliente, a imprensa nacional, do "Libération" de esquerda ao "Le Figaro" de direita, passando pelo "Le Monde" centrista, não satisfeita em opinar nas páginas editorialísticas, retocou aqui e ali os fatos, retratando a bem-sucedida campanha-relâmpago como uma sucessão de reveses. Por que Bagdá caiu é algo que seus leitores não entenderam até hoje.
Alain Hertoghe, jornalista do diário católico "La Croix", explicou em seu livro "La Guerre à Outrances: Comment la Presse nous a Désinformés sur l'Irak" (Guerra sem Limites : Como a Imprensa nos Desinformou sobre o Iraque) que a cobertura ficara aquém das exigências mínimas de objetividade. E foi demitido. Quase nenhum de seus colegas saiu em sua defesa, e tanto o fato como o livro que o desencadeou mereceram mais comentários em Londres e Nova York do que em Paris.
Não é a toa, portanto, que, em dezembro, uma capa do "L"Express", estampando uma foto de George Bush, dizia: "O Homem que Arruinou Nosso Ano". Nosso de quem? A imprensa tem às vezes um quê de profético, pois, enquanto a revista ainda estava nas bancas, o Exército do homem em questão capturou o ditador iraquiano.
Tratou-se, enfim, de um ano que decepcionou a muitos. Aconteça o que acontecer amanhã, esses foram, desde a década de 70, quando a vertente política do Islã iniciou sua metástase, os 12 meses mais traumáticos para os jihadistas. Seus inimigos conquistaram e mantêm ocupados dois países centrais para a causa deles com perdas que não chegam a um centésimo das sofridas na Indochina. A guerra de Arafat contra Israel tem rendido resultados decrescentes : o número de israelenses mortos caiu pela metade em relação a 2002. O autocrata da Líbia se rendeu sem dar um tiro, e o de Damasco sabe que está cercado.
O projeto de converter a União Européia em rival estratégico dos americanos, se não de todo enterrado, já recebeu oficialmente a extrema-unção. E, conforme, por um lado, a esquerda autoritária amargava um 1989 agravado e os motores da economia continental se enguiçavam, por outro, o desemprego caiu na Inglaterra, e os EUA cresceram em ritmo acelerado, tornando a vitória eleitoral do New Labour e dos republicanos cada vez mais provável.
Que ano! Só resta apertar o cinto de segurança e preparar-se para o novo.



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