São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2005

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Autor manteve coerência ao criticar lógica do lucro

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

Quando surge uma notícia dessas, o que vem na cabeça é um turbilhão de memórias pessoais, misturadas à figura pública, aquela que conhecemos por meio de sua obra e fofocas, rumores, entrevistas etc.
Arthur Miller, o autor de "A Morte de um Caixeiro-Viajante", levou uma vida discreta nas últimas décadas. Antes disso, teve um breve casamento com Marilyn Monroe -coisa que ele veio a destruir publicamente mais tarde. Explico: sempre carinhoso a respeito de Marilyn, um certo dia, sem mais nem menos, visitado por Elmar Zorn, ex-curador do Wiener Festwochen, o famoso autor começou a desabafar. Zorn foi quem me levou ao festival de Viena e me confidenciou alguns desses desabafos. "Eu não agüentava mais viver com uma pessoa que não gostava de si mesma", disse Miller a Zorn.
Numa certa ocasião, creio que em 1985, Norman Mailer escreveu uma peça sobre Marilyn em que Miller era um dos personagens. Por acaso, Heiner Müeller estava em Nova York, e fomos todos juntos ver. Um desastre. Um horror. Uma tentativa de realismo, ou hiper-realismo, que só conseguiu fazer com que a platéia se entreolhasse ou olhasse para o sinal de "exit" (saída), ou como se estivessem todos perguntando: "O que estamos fazendo aqui?".
Ficamos todos assustados quando descobrimos que Miller estava na platéia. Zombadíssimo no texto de Mailer, Miller não se mexia na poltrona. No final, todos correram, foram embora para não ter que enfrentar o "debate" que Mailer sempre insiste em ter.
Era a verdadeira conspiração: Miller, Mailer e Müeller.
Anos depois, fiquei felizmente chocado quando Arthur Miller apareceu no memorial que a New York University fez para homenagear a morte de Jerzy Grotowski há alguns anos. Jamais pude imaginar que houvesse qualquer conexão entre os dois. Aliás, acho que não havia. Era somente um teatrólogo homenageando um outro. Belas palavras saíram de sua boca.
Miller, nos últimos anos, era um ávido crítico da instituição comercial que a Broadway virou. Aliás, sua última peça, "Finishing the Picture" (terminando o quadro), era baseada num trecho de sua vida com Marilyn.
Num longo discurso, ao aceitar o Prêmio Tony, Miller tacou fogo em tudo o que dizia respeito aos produtores da Broadway e como eles agem diante dos talentos de hoje; criticou a comercialização do teatro e finalizou afirmando que, se "o capitalismo e o "lucrismo" reinarem desse jeito, não há talento que resista, pois são os produtores que regulam o autor. É como se quem escrevesse o capítulo final de uma peça não fosse mais o autor, e sim um economista ou um contador". Nada mais coerente para quem escreveu uma obra de arte como "A Morte de um Caixeiro-Viajante".


Gerald Thomas é diretor teatral


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