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Dramaturgo desmontou o sonho norte-americano
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Arthur Miller morre aos 89
anos no momento em que os
EUA talvez mais precisem dele.
Ao desafinar constantemente o
coro dos contentes, "inimigo do
povo", como o protagonista da
peça de Ibsen que ele adaptou em
1950, tinha como ponto de honra
em suas peças a denúncia do pensamento fundamentalista que
menospreza o indivíduo em nome de uma ideologia colocada
acima de qualquer suspeita.
Ao desmontar o mito do "sonho americano", mola mestre do
capitalismo, Miller elegeu o homem comum, branco de classe
média, atormentado pelo passado
e por sua consciência, como seu
herói trágico. Tendo a memória
como instrumento, adotando recursos do teatro épico como o
personagem-narrador, não o fez
no entanto para chegar a fórmulas didáticas moralizantes, mas
para propor a perplexidade, temperada por um humor sarcástico,
como um valor fundamental.
Seu primeiro sucesso, "Todos
os Meus Filhos", já vai contra a
corrente triunfalista da América
que se tornara a grande vencedora da Segunda Guerra. Baseada
em fatos reais, põe em cena um
fornecedor de peças de avião defeituosas que provocam a morte
de pilotos. Seu filho, ao descobrir
que esta é a origem da fortuna da
família, se suicida.
Teimando em não deixar cicatrizar feridas incômodas, vai mais
além em sua peça seguinte, "A
Morte de um Caixeiro-Viajante",
de 1949, considerada sua obra-prima. Em uma fábula cruel, um
fiel seguidor dos princípios da auto-ajuda vê sua vida naufragar, vítima das ilusões do capitalismo.
Desafiando o sistema abertamente, o autor fez questão de dirigir
ele mesmo a peça na China comunista, em 1983 -mas é a riqueza
com que construiu seus personagens que fez ser esta sua peça mais
montada. O Brasil foi o terceiro
país a fazê-lo -por Jaime Costa,
em 1951-, sendo que o papel foi
também de Marco Nanini na versão de Felipe Hirsch, em 2003.
Tanta insolência não tardou a
incomodar os puritanos anos 50,
mas Miller desafiou o comitê de
atividades antiamericanas do senador Joseph McCarthy com "As
Bruxas de Salem" (53), um atemporal libelo pela liberdade de
idéias, que lhe rendeu um mês de
prisão em 1957.
Nessa época, porém, Miller dominava a mídia, casado com Marilyn Monroe -e, quando por
sua vez essa fase terminou em doloroso divórcio e posterior suicídio da estrela, Miller não hesitou
em se expor no palco, com "Depois da Queda", peça montada no
Brasil por Flavio Rangel, com Maria Della Costa e Paulo Autran, no
conturbado ano de 1964.
Sua ousada recusa do pensamento totalitário deixou marcas
profundas na dramaturgia brasileira, em Jorge Andrade e em
Oduvaldo Viana Filho, por exemplo. Neste momento, em que um
puritanismo hipócrita volta a sufocar a liberdade de idéias, espera-se que ele não seja o último intelectual americano de esquerda.
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