São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2005

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Dramaturgo desmontou o sonho norte-americano

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Arthur Miller morre aos 89 anos no momento em que os EUA talvez mais precisem dele. Ao desafinar constantemente o coro dos contentes, "inimigo do povo", como o protagonista da peça de Ibsen que ele adaptou em 1950, tinha como ponto de honra em suas peças a denúncia do pensamento fundamentalista que menospreza o indivíduo em nome de uma ideologia colocada acima de qualquer suspeita.
Ao desmontar o mito do "sonho americano", mola mestre do capitalismo, Miller elegeu o homem comum, branco de classe média, atormentado pelo passado e por sua consciência, como seu herói trágico. Tendo a memória como instrumento, adotando recursos do teatro épico como o personagem-narrador, não o fez no entanto para chegar a fórmulas didáticas moralizantes, mas para propor a perplexidade, temperada por um humor sarcástico, como um valor fundamental.
Seu primeiro sucesso, "Todos os Meus Filhos", já vai contra a corrente triunfalista da América que se tornara a grande vencedora da Segunda Guerra. Baseada em fatos reais, põe em cena um fornecedor de peças de avião defeituosas que provocam a morte de pilotos. Seu filho, ao descobrir que esta é a origem da fortuna da família, se suicida.
Teimando em não deixar cicatrizar feridas incômodas, vai mais além em sua peça seguinte, "A Morte de um Caixeiro-Viajante", de 1949, considerada sua obra-prima. Em uma fábula cruel, um fiel seguidor dos princípios da auto-ajuda vê sua vida naufragar, vítima das ilusões do capitalismo. Desafiando o sistema abertamente, o autor fez questão de dirigir ele mesmo a peça na China comunista, em 1983 -mas é a riqueza com que construiu seus personagens que fez ser esta sua peça mais montada. O Brasil foi o terceiro país a fazê-lo -por Jaime Costa, em 1951-, sendo que o papel foi também de Marco Nanini na versão de Felipe Hirsch, em 2003.
Tanta insolência não tardou a incomodar os puritanos anos 50, mas Miller desafiou o comitê de atividades antiamericanas do senador Joseph McCarthy com "As Bruxas de Salem" (53), um atemporal libelo pela liberdade de idéias, que lhe rendeu um mês de prisão em 1957.
Nessa época, porém, Miller dominava a mídia, casado com Marilyn Monroe -e, quando por sua vez essa fase terminou em doloroso divórcio e posterior suicídio da estrela, Miller não hesitou em se expor no palco, com "Depois da Queda", peça montada no Brasil por Flavio Rangel, com Maria Della Costa e Paulo Autran, no conturbado ano de 1964.
Sua ousada recusa do pensamento totalitário deixou marcas profundas na dramaturgia brasileira, em Jorge Andrade e em Oduvaldo Viana Filho, por exemplo. Neste momento, em que um puritanismo hipócrita volta a sufocar a liberdade de idéias, espera-se que ele não seja o último intelectual americano de esquerda.


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