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São Paulo, quarta-feira, 12 de março de 2003

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MARCELO COELHO

Os muitos lados de um nariz

Stephen Daldry não tem muita sorte com os críticos de cinema. "Billy Elliot" foi acusado de apelativo e sentimental. De tão injusta, a opinião me pareceu quase ininteligível na época. "As Horas", seu novo filme, também foi pichado. Gostei, mas sem especial entusiasmo.
O filme tem coisas desiguais. Ed Harris no papel de poeta soropositivo -com direito a típicas neuroses de gênio ressentido- não tem a densidade de Julianne Moore, inesquecível no papel de uma típica dona-de-casa nos Estados Unidos dos anos 50, que se descobre não tão típica assim. Mais do que típicas, entretanto, são puro clichê as cenas em que Nicole Kidman, no papel de Virginia Woolf, vive dificuldades para iniciar seu mais famoso romance.
Vemos a moça fumando bitucas de cigarro sem filtro, rodeada de folhas de papel, tentando garatujar as primeiras linhas, que sabemos clássicas, de "Mrs. Dalloway". São sempre forçadas essas representações cinematográficas do "drama de um espírito criador".
Juntando três histórias (a de Virginia Woolf, a da dona-de-casa na década de 50 e a do poeta com Aids), o filme tem elementos de sobra para interessar e comover o público. Eu, pelo menos, fiquei interessado e comovido, sem me sentir um pateta irrecuperável por causa disso.
Também soube de gente que saiu deprimidíssima do cinema, dizendo que nunca viu coisa mais triste em toda a vida... Não tive essa sensação. Bem, tanto faz. Passemos ao mais importante.
O que realmente achei curioso nas conversas, nos comentários e nas notícias sobre "As Horas" foi o destaque dado ao nariz postiço de Nicole Kidman. Ninguém fala do filme sem se referir à prótese. Até numa passeata contra o bombardeio ao Iraque houve menções ao nariz.
Acho que era uma passeata de orgulho gay na Austrália. Alguém apareceu com a réplica de um míssil entre as pernas, dizendo que aquele era o nariz da Nicole. Não entendi direito. Será que era um míssil Cruise? E já nem sei se Nicole Kidman está ou esteve casada com Tom Cruise, ou se era outro com outra... Bruce Willis? Meg Ryan? Mel Gibson? Qual era a namoradinha da América?
O fato é que Nicole Kidman já andava passando por um processo de siliconização qualquer; tinha visto fotos dela meio estranhas, com cara de Margaret Thatcher, de vilã do Batman ou coisa parecida. Arrisco então uma primeira explicação sobre o nariz: no papel de Virginia Woolf, Nicole Kidman teve de ficar mais frágil, mais curvada, mais "escritora", sem nada a ver com o padrão da mulheraça americana, daquelas de vestido decotado que vemos na festa do Oscar.
Ao mesmo tempo, a atriz ficou desglamourizada e masculina, com um olhar penetrante de pássaro. Fizeram de Nicole Kidman uma intelectual, e uma intelectual bastante ambígua na sua sexualidade. Stephen Daldry não trata muito do homossexualismo de Virginia Woolf, mas, de alguma forma, espalha-o por todas as outras personagens do filme.
O nariz postiço corresponderia, assim, a um disfarce invertido. Pensa-se, em geral, no gay ou na lésbica que ocultam sua sexualidade, fazendo-se passar por heteros. Aqui é o oposto: lesbianizaram Nicole Kidman, só que discretamente, sutilmente... E a brincadeira da passeata gay parece ter sido a de escancarar, num paradoxo, o componente agressivo, ianque e pneumático de sua sexualidade feminina real.
Outro aspecto seria o da flagrante inverdade daquele nariz. Tive a impressão, vendo o filme, de que ele mudava de forma. E quanto mais o rosto de Nicole Kidman ficava parecido com o rosto real de Virginia Woolf, mais inconvincente se tornava, porque parecia uma réplica de Virginia Woolf querendo o tempo todo me convencer de que não era uma réplica de Virginia Woolf.
O efeito levemente ridículo de tudo isso só poderia se agravar à medida que a situação da personagem se ia revelando de fato dramática e insuportável. Quem pensaria em suicidar-se usando um nariz postiço?
Mas vem daí uma outra explicação para o fenômeno. Todo mundo comentou a prótese porque o pormenor anula, de algum modo, a tragicidade do filme. E também porque assim se expõe, mais uma vez, o ilusionismo hollywoodiano. Os destinos mais pungentes são vividos pela famosa e invejável estrela de cinema; a mulher deprimidíssima e esfarrapada, que é também a escritora genial, é antes de tudo Nicole Kidman.
Como seu predecessor mais famoso, Pinóquio (esqueçamos Cleópatra), o nariz de Nicole Kidman é também um índice de que a mentira está bem próxima. A ligação disso com o movimento contra a guerra no Iraque não é difícil de fazer. Por certo, Saddam Hussein esconde muita coisa. Mas é Bush que, obviamente, não convence ninguém.
Por essas e outras, o filme mais importante a ser visto no momento é "O Americano Tranquilo", baseado num romance de Graham Greene sobre o começo da intervenção americana no Vietnã. Retrata-se ali aquela perfeita mistura de cinismo e de honestidade, de convicção idealista e de criminalidade desenfreada, que tantas vezes se repete na política externa norte-americana.
Quem viu o filme vai achar moderado o vocabulário que acabo de empregar. A história de "O Americano Tranquilo" é absolutamente demolidora. Não é de espantar que o filme não esteja à altura do seu conteúdo. A timidez e o convencionalismo da produção tratam de encobrir todas as vilanias em jogo. Até mesmo a canalhice dos personagens antiamericanos fica esmaecida também. Mas o que vemos na tela é o bastante para nos fazer esquecer, provisoriamente que seja, Nicole Kidman e seu momentoso apêndice facial. Vale a pena.


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