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MARCELO COELHO
Os muitos lados de um nariz
Stephen Daldry não tem
muita sorte com os críticos de
cinema. "Billy Elliot" foi acusado
de apelativo e sentimental. De tão
injusta, a opinião me pareceu
quase ininteligível na época. "As
Horas", seu novo filme, também
foi pichado. Gostei, mas sem especial entusiasmo.
O filme tem coisas desiguais. Ed
Harris no papel de poeta soropositivo -com direito a típicas neuroses de gênio ressentido- não
tem a densidade de Julianne
Moore, inesquecível no papel de
uma típica dona-de-casa nos Estados Unidos dos anos 50, que se
descobre não tão típica assim.
Mais do que típicas, entretanto,
são puro clichê as cenas em que
Nicole Kidman, no papel de Virginia Woolf, vive dificuldades para iniciar seu mais famoso romance.
Vemos a moça fumando bitucas de cigarro sem filtro, rodeada
de folhas de papel, tentando garatujar as primeiras linhas, que sabemos clássicas, de "Mrs. Dalloway". São sempre forçadas essas
representações cinematográficas
do "drama de um espírito criador".
Juntando três histórias (a de
Virginia Woolf, a da dona-de-casa na década de 50 e a do poeta
com Aids), o filme tem elementos
de sobra para interessar e comover o público. Eu, pelo menos, fiquei interessado e comovido, sem
me sentir um pateta irrecuperável
por causa disso.
Também soube de gente que
saiu deprimidíssima do cinema,
dizendo que nunca viu coisa mais
triste em toda a vida... Não tive
essa sensação. Bem, tanto faz.
Passemos ao mais importante.
O que realmente achei curioso
nas conversas, nos comentários e
nas notícias sobre "As Horas" foi
o destaque dado ao nariz postiço
de Nicole Kidman. Ninguém fala
do filme sem se referir à prótese.
Até numa passeata contra o bombardeio ao Iraque houve menções
ao nariz.
Acho que era uma passeata de
orgulho gay na Austrália. Alguém
apareceu com a réplica de um
míssil entre as pernas, dizendo
que aquele era o nariz da Nicole.
Não entendi direito. Será que era
um míssil Cruise? E já nem sei se
Nicole Kidman está ou esteve casada com Tom Cruise, ou se era
outro com outra... Bruce Willis?
Meg Ryan? Mel Gibson? Qual era
a namoradinha da América?
O fato é que Nicole Kidman já
andava passando por um processo de siliconização qualquer; tinha visto fotos dela meio estranhas, com cara de Margaret
Thatcher, de vilã do Batman ou
coisa parecida. Arrisco então
uma primeira explicação sobre o
nariz: no papel de Virginia Woolf,
Nicole Kidman teve de ficar mais
frágil, mais curvada, mais "escritora", sem nada a ver com o padrão da mulheraça americana,
daquelas de vestido decotado que
vemos na festa do Oscar.
Ao mesmo tempo, a atriz ficou
desglamourizada e masculina,
com um olhar penetrante de pássaro. Fizeram de Nicole Kidman
uma intelectual, e uma intelectual bastante ambígua na sua sexualidade. Stephen Daldry não
trata muito do homossexualismo
de Virginia Woolf, mas, de alguma forma, espalha-o por todas as
outras personagens do filme.
O nariz postiço corresponderia,
assim, a um disfarce invertido.
Pensa-se, em geral, no gay ou na
lésbica que ocultam sua sexualidade, fazendo-se passar por heteros. Aqui é o oposto: lesbianizaram Nicole Kidman, só que discretamente, sutilmente... E a brincadeira da passeata gay parece
ter sido a de escancarar, num paradoxo, o componente agressivo,
ianque e pneumático de sua sexualidade feminina real.
Outro aspecto seria o da flagrante inverdade daquele nariz.
Tive a impressão, vendo o filme,
de que ele mudava de forma. E
quanto mais o rosto de Nicole
Kidman ficava parecido com o
rosto real de Virginia Woolf, mais
inconvincente se tornava, porque
parecia uma réplica de Virginia
Woolf querendo o tempo todo me
convencer de que não era uma réplica de Virginia Woolf.
O efeito levemente ridículo de
tudo isso só poderia se agravar à
medida que a situação da personagem se ia revelando de fato
dramática e insuportável. Quem
pensaria em suicidar-se usando
um nariz postiço?
Mas vem daí uma outra explicação para o fenômeno. Todo
mundo comentou a prótese porque o pormenor anula, de algum
modo, a tragicidade do filme. E
também porque assim se expõe,
mais uma vez, o ilusionismo
hollywoodiano. Os destinos mais
pungentes são vividos pela famosa e invejável estrela de cinema; a
mulher deprimidíssima e esfarrapada, que é também a escritora
genial, é antes de tudo Nicole Kidman.
Como seu predecessor mais famoso, Pinóquio (esqueçamos
Cleópatra), o nariz de Nicole Kidman é também um índice de que
a mentira está bem próxima. A ligação disso com o movimento
contra a guerra no Iraque não é
difícil de fazer. Por certo, Saddam
Hussein esconde muita coisa.
Mas é Bush que, obviamente, não
convence ninguém.
Por essas e outras, o filme mais
importante a ser visto no momento é "O Americano Tranquilo",
baseado num romance de Graham Greene sobre o começo da
intervenção americana no Vietnã. Retrata-se ali aquela perfeita
mistura de cinismo e de honestidade, de convicção idealista e de
criminalidade desenfreada, que
tantas vezes se repete na política
externa norte-americana.
Quem viu o filme vai achar moderado o vocabulário que acabo
de empregar. A história de "O
Americano Tranquilo" é absolutamente demolidora. Não é de espantar que o filme não esteja à altura do seu conteúdo. A timidez e
o convencionalismo da produção
tratam de encobrir todas as vilanias em jogo. Até mesmo a canalhice dos personagens antiamericanos fica esmaecida também.
Mas o que vemos na tela é o bastante para nos fazer esquecer,
provisoriamente que seja, Nicole Kidman e seu momentoso apêndice facial. Vale a pena.
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