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FERNANDO GABEIRA
Bob Marley, com um pequeno atraso
Fevereiro foi o mês de Bob
Marley, nascido no dia 6, na
freguesia rural de St. Ann, na Jamaica. Não foi possível escrever
sobre ele. Primeiro os fatos, depois
os mitos. Também nasci em fevereiro e comemorei meu aniversário em Anapu. Só agora, abrindo
caminho entre os temas da atualidade, posso me dedicar a esse artista, que vi no verão sueco com
impacto tão inesquecível como o
do sol da meia-noite.
Estávamos no meio da década
de 70. O reggae era uma lufada de
ar fresco para quem tinha saudade dos trópicos. Era possível ver
como encantava os jovens negros,
em luta pela identidade cultural,
e a classe média, seduzida por
uma visão mais que liberal, religiosa, sobre a maconha.
Olhando para trás, hoje, quando vejo meninas de 17 anos ouvindo Bob Marley, ainda reconheço essa atração. Mas é necessário dar um novo peso à qualidade estética da música caribenha. A maneira como o reggae se
propagou no Brasil, ganhando
base popular na Bahia e no Maranhão, tem muito a ver com a
busca da identidade do povo negro. Tanto o bairro da Liberdade,
em Salvador, como os inúmeros
recantos de São Luís onde o reggae era a atração expressam essa
busca que transcende fronteiras.
Durante o recesso parlamentar, li
a biografia de Bob Marley escrita
por Timothy White, editor da
"Billboard". Com 542 páginas, é
generosa em detalhes sobre a vida
do cantor e seu lado místico.
Essa parte talvez seja a mais
vulnerável da biografia, pois não
investiga o que aconteceu com as
idéias religiosas do cantor, com a
utopia mística do rastafarianismo -o livro tem episódios sobrenaturais, dando a entender que
estamos diante de um Marley dotado de poderes extraordinários.
White admira tanto Marley que
nos projeta a vida de um santo.
Desde o fato de Bob ser neto de
um "obeah", espécie de curandeiro jamaicano, até a posse do anel
do imperador da Etiópia, todos
esses detalhes são organizados
para celebrar uma religião que
não deu tão certo quanto a trajetória estética do cantor.
A utopia rastafári nasceu também das idéias de Marcus Garvey
(1880-1940), um jamaicano que
andou pelos EUA, foi preso e voltou ao seu país defendendo a tese
de que os descendentes de escravos não encontrariam a salvação
se não voltassem para a África.
"Olhem para a África", dizia
ele, "onde um rei negro será coroado: ele será o redentor".
Isso foi em 1927 e, três anos mais
tarde, Tafari Makonnen ganhava
o título de soberano etíope e se
tornava imperador com o nome
de Hailé Selassié. O império tornou-se uma "nova Jerusalém" para os rastas. São algumas das
idéias que Marley iria abraçar e
que hoje são apenas uma ruína.
Selassié jamais acreditou na
história de rei dos reis, embora a
adoração jamaicana o deixasse
sensibilizado. Ele foi recebido por
100 mil pessoas quando visitou
Kingston e decidiu destinar terras
para os rastas que quisessem voltar à África. Era uma forma de
agradecer àquela adoração sem
se envolver mais profundamente.
Os biógrafos de Marley não
acompanharam o futuro de sua
utopia religiosa. Mas a imprensa,
sim. Em fevereiro, auge das comemorações, foram feitas visitas à
cidade de Sashemene, na Etiópia.
Como estão hoje os rastas que
resolveram deixar a Jamaica por
essa volta à terra de origem?
A primeira impressão de Shashemene é que existem duas cidades. Uma dos africanos, com quase 100 mil habitantes. A outra, a
cidade dos rastas, com 1.500. As
terras dadas por Selassié foram
envolvidas pelo crescimento de
Sashemene, os rastas espremidos
e derrotados pela grilagem.
Muitos deles são hostilizados
pelos africanos quando andam
em Shashemene. Os 200 hectares
de terra fértil, a 200 quilômetros
ao sul de Addis Abeba, encolheram, e hoje a comunidade rasta
depende da ajuda de seus fiéis no
exterior. Um ex-banqueiro norte-americano quer construir um
complexo turístico. Os bonés rastas são feitos para a venda na Europa e há um templo, a Igreja do
Tabernáculo. Na entrada, alguns
garotos vendem maconha, e no
templo há uma inscrição: "É proibido fumar ou consumir drogas".
O cartaz avisa que maconha não
é droga, mas um remédio.
Os "dreadlocks" são a marca
dos rastas, mas um deles confessa
que os africanos não gostam desse
tipo de cabelo: "Temos de estar
atentos. Às vezes, uma simples
palavra mal dita serve para que
nos ataquem em bandos".
Os sonhos de Marvey e Marley
no que diz respeito à volta para a
África começaram a morrer também quando Selassié foi morto
pela revolução que realizou uma
reforma agrária radical. As terras
foram reduzidas para 50 hectares,
e os vizinhos, que consideravam
os rastas protegidos do palácio
imperial, avançaram sobre suas
posses pilhando o que puderam.
Uma matéria do "Le Monde",
de Jean Phillipe Rémy, conta que
a esperança não morreu. Um casal da Martinica acabava de
construir uma casa nova na região e, nas horas vagas, redigia
um guia de instalação na Etiópia,
para os rastas francófonos.
O destino da comunidade rasta
na Etiópia depende mais da venda de seus produtos e do turismo
que pode atrair fiéis dos EUA e da
Europa. Não sei se hoje, em
Kingston, se fala em volta à África. O fato é que Marley teve um
grande papel elevando a auto-estima dos negros, contribuindo para um debate sobre a maconha e
deixando maravilhosas canções.
Ele emergiu no mundo de violência urbana de Kingston, mas
nunca conseguiu se libertar dele.
Na minha visão dos anos 70, vendo Peter Tosh ferido pela polícia,
imaginava que grandes nomes do
reggae eram vítimas. Lendo White, percebo que a indústria de discos montada era violenta, e que
tanto Marley quanto Tosh também usaram a violência -Bob,
para tentar receber direitos autorais que lhe eram negados.
Essa atmosfera mística que se
criou em torno dele talvez o tenha
estimulado a exercer sua liberdade acima da sensibilidade comum, como faria ao encontrar-se
com outras mulheres, no mesmo
hotel em que se hospedava com
Rita. Felizmente, Bob Marley não
era um santo. Com tantas qualidades humanas e estéticas, a santidade não é um bem supérfluo?
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