São Paulo, segunda-feira, 12 de março de 2007

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GUILHERME WISNIK

Amadorismo crítico


Lucio Costa desconfia da visão do arquiteto-urbanista que constrói espaços para um indivíduo anônimo

O DIA de ontem marcou os 50 anos do concurso para o Plano Piloto de Brasília, quando o projeto que seria vencedor, feito por Lucio Costa, foi o último a ser entregue no guichê do ministério.
Vendo hoje, em retrospecto, é vertiginoso pensar como uma realidade tão consolidada quanto Brasília, na escala que tem, dependeu por um momento da combinação de circunstâncias frágeis: as folhas datilografas na rua da Quitanda, que ficaram prontas em cima da hora, os desenhos colados com aneisinhos de durex sobre cartões rígidos com a ajuda das filhas e, sobretudo, as idéias que vieram da cabeça de um homem só, que, apesar de culto e inteligente, não tinha experiência em urbanismo.
Para quem compara os projetos premiados, salta aos olhos o caráter prosaico e despretensioso de sua apresentação, feita de croquis sumários e um memorial que alterna determinações gerais, como o traçado dos dois eixos em cruz, ou o estudo das conversões viárias evitando cruzamentos em nível, com a especificação de surpreendentes pormenores cotidianos, como a necessária singelez das lápides do cemitério, o posicionamento estratégico da rodoviária de modo a proporcionar uma última despedida do eixo monumental para quem deixa a cidade, ou a definição da cor do uniforme e a especificação do uso do quepe para o motorista dos ônibus urbanos.
Apegado a uma afetividade pré-moderna, forjada ainda no rescaldo da experiência colonial, Lucio Costa investe-se, ao mesmo tempo, da "nobreza de intenção" necessária ao projeto de uma capital, dotada de um desejável sentido de "monumentalidade". Desse modo, imaginou as superquadras como claustros urbanos separados das autopistas e da área cívica, recintos de intimidade protegidos por densa vegetação, com edifícios cuja altura permite que as crianças, no térreo, ouçam ao chamado das mães no último andar.
Diferentemente da maioria dos concorrentes, Costa desconfia da visão soberana do arquiteto-urbanista que constrói espaços para um indivíduo anônimo. Ao invés de ampliar a escala dos seus desenhos, procura narrar a vivência das personagens, observando esses indivíduos em sua rotina íntima e diária como um ficcionista que convive afetivamente com o mundo que imagina.
Resulta daí uma supervisão dúbia sobre o projeto, que oscila entre o excessivo rigor e o vago abandono, deixando inúmeros aspectos do plano em aberto. Atitude em tudo oposta à posição mais fria e científica dos irmãos Roberto, por exemplo, que por meio do estudo detalhado das massas e do controle socioeconômico do crescimento urbano pretendiam construir um modelo de "cidade ideal".
Como se vê, a riqueza da postura de Lucio está na sua ambigüidade, capaz de situá-lo tanto como um planejador desconfiado, irônico, de certo modo na retaguarda do desenvolvimentismo frenético dos anos JK, quanto como um artista construtivamente afinado à delicadeza otimista daqueles tempos, transformando voluntariamente suas convicções em "amadorismo", assim como Tom Jobim e João Gilberto.


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