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GUILHERME WISNIK
Amadorismo crítico
Lucio Costa desconfia da visão do arquiteto-urbanista que constrói espaços para um indivíduo anônimo
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O DIA de ontem marcou os 50
anos do concurso para o Plano Piloto de Brasília, quando
o projeto que seria vencedor, feito
por Lucio Costa, foi o último a ser
entregue no guichê do ministério.
Vendo hoje, em retrospecto, é vertiginoso pensar como uma realidade
tão consolidada quanto Brasília, na
escala que tem, dependeu por um
momento da combinação de circunstâncias frágeis: as folhas datilografas na rua da Quitanda, que ficaram prontas em cima da hora, os desenhos colados com aneisinhos de
durex sobre cartões rígidos com a
ajuda das filhas e, sobretudo, as
idéias que vieram da cabeça de um
homem só, que, apesar de culto e inteligente, não tinha experiência em
urbanismo.
Para quem compara os projetos
premiados, salta aos olhos o caráter
prosaico e despretensioso de sua
apresentação, feita de croquis sumários e um memorial que alterna determinações gerais, como o traçado
dos dois eixos em cruz, ou o estudo
das conversões viárias evitando cruzamentos em nível, com a especificação de surpreendentes pormenores cotidianos, como a necessária
singelez das lápides do cemitério, o
posicionamento estratégico da rodoviária de modo a proporcionar
uma última despedida do eixo monumental para quem deixa a cidade,
ou a definição da cor do uniforme e a
especificação do uso do quepe para o
motorista dos ônibus urbanos.
Apegado a uma afetividade pré-moderna, forjada ainda no rescaldo
da experiência colonial, Lucio Costa
investe-se, ao mesmo tempo, da
"nobreza de intenção" necessária ao
projeto de uma capital, dotada de
um desejável sentido de "monumentalidade". Desse modo, imaginou as superquadras como claustros
urbanos separados das autopistas e
da área cívica, recintos de intimidade protegidos por densa vegetação,
com edifícios cuja altura permite
que as crianças, no térreo, ouçam ao
chamado das mães no último andar.
Diferentemente da maioria dos
concorrentes, Costa desconfia da visão soberana do arquiteto-urbanista
que constrói espaços para um indivíduo anônimo. Ao invés de ampliar
a escala dos seus desenhos, procura
narrar a vivência das personagens,
observando esses indivíduos em sua
rotina íntima e diária como um ficcionista que convive afetivamente
com o mundo que imagina.
Resulta daí uma supervisão dúbia
sobre o projeto, que oscila entre o
excessivo rigor e o vago abandono,
deixando inúmeros aspectos do plano em aberto. Atitude em tudo
oposta à posição mais fria e científica dos irmãos Roberto, por exemplo,
que por meio do estudo detalhado
das massas e do controle socioeconômico do crescimento urbano pretendiam construir um modelo de
"cidade ideal".
Como se vê, a riqueza da postura
de Lucio está na sua ambigüidade,
capaz de situá-lo tanto como um
planejador desconfiado, irônico, de
certo modo na retaguarda do desenvolvimentismo frenético dos anos
JK, quanto como um artista construtivamente afinado à delicadeza
otimista daqueles tempos, transformando voluntariamente suas convicções em "amadorismo", assim como Tom Jobim e João Gilberto.
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