São Paulo, sábado, 12 de março de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Enrique Vila-Matas cria intrigante exercício de irreverência

DANIEL BENEVIDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Lançada originalmente em 1985, "História Abreviada da Literatura Portátil", a facilmente portável novela do espanhol Enrique Vila-Matas, inaugurou um gênero, cujo maior seguidor é o próprio autor.
Ele depois escreveria "O Mal de Montano" (2005) e "Doutor Pasavento" (2010), versões mais musculosas de um mesmo tema: a obsessão pela literatura.
É, por isso, a melhor porta de entrada para sua obra, bastante cultuada entre escritores, misto excêntrico de jovialidade e ironia, iconoclastia e idolatria.
É também, ao lado de "Bartleby e Companhia" (2004), seu livro mais leve (nos dois sentidos), costurado por uma escrita despretensiosa, que brinca com os elementos eruditos que a compõem, subvertendo ludicamente momentos e figuras reais e tornando reais sujeitos e situações imaginários.
Pois Vila-Matas reúne nessa abreviada história alguns de seus artistas favoritos, como Tristán Tzara (1896-1963), Marcel Duchamp (1887-1968), García Lorca (1898-1936) e Walter Benjamin (1892-1940), e os transforma em personagens de uma conspiração.
Eles se autodenominam Shandys, uma referência ao Tristam Shandy de Lawrence Sterne (1713-1768), do qual tiram seu mote: "A seriedade é uma região misteriosa do corpo que oculta os defeitos da mente".
São, como descritos pelo autor, solitários por natureza, avessos a qualquer solenidade, dotados de espírito inovador, sexualidade extrema, relação tensa com seu duplo e disposição para viagens contínuas, o que os torna enraizados apenas nas possibilidades futuras.
Essa última característica é a que melhor define a sociedade secreta dos portáteis, que criaram e da qual fazem parte com fervor anárquico.
A história se passa no período entreguerras, de 1924 a 1927, e tem também seus vilões e figuras autodestrutivas, como o satanista e "traidor da causa" Aleister Crow- ley (1875-1947) e o poeta Jacques Rigaut (1898-1929).

DO NADA PARA O NADA
Como sempre em Vila-Matas, não há propriamente começo, meio e fim; há, sim, um "meio", no sentido de bloco narrativo flutuante, que parte de um começo pre- existente e ruma "ao nada e para o nada", o que pode ser entendido como o infinito.
À maneira de outros romancistas que confundem propositalmente as fronteiras entre ficção e ensaio, Vila-Matas elabora narrativas abertas, enredos que se estendem ao redor do próprio livro, sugerindo os caminhos percorridos pelo autor, o labirinto de referências no qual se embrenhou.
No fim das contas, é um divertido exercício de reverência irreverente, em que o humor dialoga constantemente com a admiração.
Fica evidente que Vila-Matas sofre do mal que ele mesmo diagnosticou -o mal de Montano, mas não da doença de Bartleby.
Sua produção, irregular, mas sempre intrigante, não para de crescer e vem sinalizando -nem sempre com bons resultados- algumas saídas para a literatura contemporânea, um pouco aturdida com o esgotamento de seus recursos habituais.

HISTÓRIA ABREVIADA DA LITERATURA PORTÁTIL

AUTOR Enrique Vila-Matas
EDITORA Cosac Naify
TRADUÇÃO Júlio Pimentel Pinto
QUANTO R$ 39 (144 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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