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Filmes mostram visões contrastantes da história
da Equipe de Articulistas
A Inglaterra da segunda metade
do século 16 é o palco de dois filmes em cartaz: "Elizabeth", de
Shekhar Kapur, e "Shakespeare
Apaixonado", de John Madden.
Cotejar os dois vale quase por
uma aula sobre as diferentes maneiras pelas quais o cinema pode
abordar a história.
Para além das coincidências entre as duas produções (ambas são
britânicas, concorrem ao Oscar,
têm a rainha Elizabeth 1ª, contam
com os atores Joseph Fiennes e
Geoffrey Rush etc.), "Elizabeth" e
"Shakespeare" reconstroem a história de modos opostos.
Não se trata aqui de ficar apontando os erros factuais desta ou daquela versão -vício farisaico de
quem ainda não percebeu que a
narrativa histórica é sempre uma
reinvenção do passado-, mas de
tentar ver como cada filme se relaciona com esse passado.
Em "Elizabeth", tudo, até a intimidade da rainha, é solene e hierático, e os personagens parecem
guiados por um destino inflexível.
Contribui para isso cada uma das
opções técnicas e estéticas dos realizadores. A cenografia é feita de
castelos suntuosos dominados por
imensas colunas de pedra, em que
os amplos espaços oprimem o indivíduo. O enquadramento predominante é a câmera alta (ou "plongé"), que fixa os personagens em
sua insignificância.
A iluminação e a fotografia, marcadamente pictóricas, conferem
uma atmosfera de irrealidade às
imagens, sempre carregadas de
sombras, ofuscadas por contraluzes ou embaçadas por diáfanos
véus. As próprias cenas de sexo são
desprovidas de carnalidade.
O que tudo isso produz é a impressão de que a História, com "h"
maiúsculo, é algo que se passa numa dimensão alheia à da vida cotidiana. Nessa visão, que parece comungar da velha crença na origem
divina dos reis, os personagens
históricos são maiores que a vida, e
habitam a esfera do mito.
Em "Shakespeare Apaixonado",
ambientado poucas décadas depois, a história é totalmente outra.
A pedra eterna é substituída pela
madeira perecível, os grandes vultos por gente de carne e osso. Mais
que isso: a história é feita de um
misto de pequenos acasos, grandes
paixões e mal-entendidos de todos
os tamanhos.
Em vez de retratar Shakespeare
como um gênio iluminado que
criava obras-primas a partir de
uma inspiração divina ou de uma
inteligência sobrenatural, o filme o
mostra como um homem falível e
ambíguo, que não hesitava em
roubar uma boa idéia de um poeta
rival e nem tampouco estava livre
de cometer maus versos.
Em nome de uma abordagem irreverente e romântica da história,
"Shakespeare Apaixonado" quase
cai no extremo de apresentar o
bardo inglês como um mero espertalhão brilhante. Mas o risco vale a
pena: o modo engenhoso como o
filme entrelaça a conturbada gênese de "Romeu e Julieta" com um
romance extraconjugal do dramaturgo faz com que vida, arte e história apareçam como facetas inseparáveis da aventura humana.
Curiosamente, é só no personagem da rainha (já cinquentona e
soberana absoluta) que o filme resvala para a mitificação: onisciente
e infalível, ela paira acima das paixões dos mortais. O que prova que
o pensamento monárquico ainda é
quase uma religião entre os britânicos.
(JOSÉ GERALDO COUTO)
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