São Paulo, Sexta-feira, 12 de Março de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Filmes mostram visões contrastantes da história

da Equipe de Articulistas

A Inglaterra da segunda metade do século 16 é o palco de dois filmes em cartaz: "Elizabeth", de Shekhar Kapur, e "Shakespeare Apaixonado", de John Madden.
Cotejar os dois vale quase por uma aula sobre as diferentes maneiras pelas quais o cinema pode abordar a história.
Para além das coincidências entre as duas produções (ambas são britânicas, concorrem ao Oscar, têm a rainha Elizabeth 1ª, contam com os atores Joseph Fiennes e Geoffrey Rush etc.), "Elizabeth" e "Shakespeare" reconstroem a história de modos opostos.
Não se trata aqui de ficar apontando os erros factuais desta ou daquela versão -vício farisaico de quem ainda não percebeu que a narrativa histórica é sempre uma reinvenção do passado-, mas de tentar ver como cada filme se relaciona com esse passado.
Em "Elizabeth", tudo, até a intimidade da rainha, é solene e hierático, e os personagens parecem guiados por um destino inflexível.
Contribui para isso cada uma das opções técnicas e estéticas dos realizadores. A cenografia é feita de castelos suntuosos dominados por imensas colunas de pedra, em que os amplos espaços oprimem o indivíduo. O enquadramento predominante é a câmera alta (ou "plongé"), que fixa os personagens em sua insignificância.
A iluminação e a fotografia, marcadamente pictóricas, conferem uma atmosfera de irrealidade às imagens, sempre carregadas de sombras, ofuscadas por contraluzes ou embaçadas por diáfanos véus. As próprias cenas de sexo são desprovidas de carnalidade.
O que tudo isso produz é a impressão de que a História, com "h" maiúsculo, é algo que se passa numa dimensão alheia à da vida cotidiana. Nessa visão, que parece comungar da velha crença na origem divina dos reis, os personagens históricos são maiores que a vida, e habitam a esfera do mito.
Em "Shakespeare Apaixonado", ambientado poucas décadas depois, a história é totalmente outra.
A pedra eterna é substituída pela madeira perecível, os grandes vultos por gente de carne e osso. Mais que isso: a história é feita de um misto de pequenos acasos, grandes paixões e mal-entendidos de todos os tamanhos.
Em vez de retratar Shakespeare como um gênio iluminado que criava obras-primas a partir de uma inspiração divina ou de uma inteligência sobrenatural, o filme o mostra como um homem falível e ambíguo, que não hesitava em roubar uma boa idéia de um poeta rival e nem tampouco estava livre de cometer maus versos.
Em nome de uma abordagem irreverente e romântica da história, "Shakespeare Apaixonado" quase cai no extremo de apresentar o bardo inglês como um mero espertalhão brilhante. Mas o risco vale a pena: o modo engenhoso como o filme entrelaça a conturbada gênese de "Romeu e Julieta" com um romance extraconjugal do dramaturgo faz com que vida, arte e história apareçam como facetas inseparáveis da aventura humana.
Curiosamente, é só no personagem da rainha (já cinquentona e soberana absoluta) que o filme resvala para a mitificação: onisciente e infalível, ela paira acima das paixões dos mortais. O que prova que o pensamento monárquico ainda é quase uma religião entre os britânicos. (JOSÉ GERALDO COUTO)


Texto Anterior: Teatro: "Três Irmãs", do russo Tchecov, estréia hoje em São Paulo
Próximo Texto: A escrita, sem paixão, é apenas um vazio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.