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A voz e a hora do poeta Mário Faustino
Chove. E Nosferatu, o Jaguar
do Zé Lino Grünewald, está pifado. Vou levá-lo em casa, e ele
pergunta se não quero subir, lá
estão alguns amigos, e ele teria
uma novidade para me mostrar. A reunião seria de proveito.
Todos eram mais ou menos
poetas, menos eu, e a surpresa
não deixava de ser suculenta.
Zé Lino tinha gravado, há tempos, uma fita com Mário Faustino recitando poemas de
Pound e Fernando Pessoa. O
poeta morrera havia pouco,
num acidente aéreo, telefonara-me na véspera, combináramos uma pesquisa nos arquivos do ""Correio da Manhã",
onde eu trabalhava. Mário já
fuçara tudo o que pudera no
""Jornal do Brasil" -e agora
queria mais.
Ecila traz da cozinha uns salgadinhos incrementados, Zé
Lino serve bebidas, e o silêncio
cai sobre nós. O gravador, daqueles antigos, de rolo, começa
a girar. E surge a voz de Mário,
destacada, possante sem ser
teatral, exata: ""Go, dumb-bom
book/ Tell her that sang me once/ that song of Lawes...".
Podia ser a voz do próprio
Ezra Pound, que chegou a gravar um de seus poemas, o ""Envoi". Mas era outra a voz, um
pouco empostada (que ele gostava de fazer o gênero, na auto-ironia que criticava o ator que
havia nele e que evitava assumir, a não ser em certos momentos).
No silêncio que havíamos feito para nós mesmos -podíamos tocar a presença de Mário
Faustino, o abraço que ficou
faltando, a despedida que não
houve.
No gravador, o rolo trazia a
respiração de Mário, respiração interrompida no meio da
noite, enquanto ele dormia e
caía verticalmente transformando-se em notícia. Ali na
sala de Zé Lino, ninguém era
dado a olhos úmidos, o mais
débil, nesse departamento, era
eu mesmo, que não sendo poeta
tinha menos compromisso com
o rigor que a arte cria e exige.
Mas sabia que Mário, se estivesse nos vendo, não perdoaria
o olhar úmido de ninguém.
Não há brutalidade em nosso
silêncio, mas uma cúmplice espera pela voz que continua:
""Till change hath broken
down? All things save Beauty
alone".
O ""alone" final é redondo, cavo, espetacular. Fica ressoando
(até que ponto a obra de Pound
não é exatamente esse ressoar
de sons e signos?).
Então Zé Lino comanda a fita
para mais adiante, o rolo gira
alucinado, a voz se transforma
em miados de um gato histérico, não articulado. Além de
Pound, Mário gravara naquela
fita alguns poemas de Fernando Pessoa.
A fita corre no gravador, e
penso na absurda caixa-preta
do avião caído em Lima, que
não fora encontrada, mas cujos
ruídos, também alucinados, jamais explicariam a morte de
Mário. A piada seria macabra:
os técnicos em acidentes aéreos
-pois os há, e muitos- encontrariam o gravador do Zé
Lino entre os destroços, rolariam a fita para saber o que se
passara com o avião antes do
choque com a montanha.
Os pesquisadores da Morte
fariam um silêncio igual ao
nosso, mas com outro sentido.
E não entenderiam o que havia
de vida naqueles ruídos. Imagino, ainda, o que restou de
Mário penetrando na eternidade como um fantasma-só-voz,
enchendo o vazio do nada com
os versos de Fernando Pessoa
que agora ouvimos, com assombrada verdade: ""O monstrengo que está no fim do mar/
na noite de breu ergueu-se a
voar;/ a roda da nau voou três
vezes/ voou três vezes a
chiar...".
Bebo mais um gole de uísque,
procuro espantar a imagem
que me vem súbita e imerecida.
Os olhos claros do Mário, avermelhados pelo sono que se prolongaria para sempre, mesmo
assim surpreendidos e inquietos: ""De quem são as velas onde
me roço? De quem as quilhas
que vejo e ouço?/ disse o monstrengo, e rodou três vezes,/ três
vezes rodou imundo e grosso...".
Ali na sala estamos de cabeça
baixa, a voz de Mário -perdido corpo não achado imundo e
grosso- três vezes fala e três
vezes repete: ""(...) do leme as
mãos ergueu/ três vezes ao leme
as repreendeu/ e disse no fim de
tremer três vezes:/ Aqui ao leme
sou mais do que eu...".
Sinto que estamos todos serenos, serenos mas crispados, ouvindo Mário Faustino recitar
um poema que, afinal, podia
ser dele, de suas quilhas e de
suas horas. Percebo que a hora
é a chave de seus versos e de sua
vida.
De qualquer forma, como naqueles quartetos finais de Beethoven, a gente espera com angústia que tudo acabe logo e
que a vida volte a ser prosaica e
sem cor, na dimensão de nossa
miséria, no ritmo de nossa mediocridade. ""Quem vem poder
o que só eu posso/ que moro onde nunca ninguém me visse/ e
escorro os medos do mar sem
fundo?"
A fita escorrega no rolo e estanca bruscamente. Bruscamente voltamos a conversar, o
gravador é agora um corpo sem
alma, um eletrodoméstico como uma geladeira, um aspirador de pó. O poeta está encarcerado naquele redondo e pequenino esquife, ali repousam seu
gosto e seu sopro. Fica difícil
acreditar que naquele carretel
há naus destroçadas, a noite de
breu, imunda e grossa, na qual,
sem deixar vestígios, desapareceram a Voz e a Hora.
Com pequenas modificações, esta crônica foi publicada logo após o desaparecimento do poeta,
no início dos anos 60.
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