São Paulo, Sexta-feira, 12 de Março de 1999
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A voz e a hora do poeta Mário Faustino

Chove. E Nosferatu, o Jaguar do Zé Lino Grünewald, está pifado. Vou levá-lo em casa, e ele pergunta se não quero subir, lá estão alguns amigos, e ele teria uma novidade para me mostrar. A reunião seria de proveito.
Todos eram mais ou menos poetas, menos eu, e a surpresa não deixava de ser suculenta. Zé Lino tinha gravado, há tempos, uma fita com Mário Faustino recitando poemas de Pound e Fernando Pessoa. O poeta morrera havia pouco, num acidente aéreo, telefonara-me na véspera, combináramos uma pesquisa nos arquivos do ""Correio da Manhã", onde eu trabalhava. Mário já fuçara tudo o que pudera no ""Jornal do Brasil" -e agora queria mais.
Ecila traz da cozinha uns salgadinhos incrementados, Zé Lino serve bebidas, e o silêncio cai sobre nós. O gravador, daqueles antigos, de rolo, começa a girar. E surge a voz de Mário, destacada, possante sem ser teatral, exata: ""Go, dumb-bom book/ Tell her that sang me once/ that song of Lawes...".
Podia ser a voz do próprio Ezra Pound, que chegou a gravar um de seus poemas, o ""Envoi". Mas era outra a voz, um pouco empostada (que ele gostava de fazer o gênero, na auto-ironia que criticava o ator que havia nele e que evitava assumir, a não ser em certos momentos).
No silêncio que havíamos feito para nós mesmos -podíamos tocar a presença de Mário Faustino, o abraço que ficou faltando, a despedida que não houve.
No gravador, o rolo trazia a respiração de Mário, respiração interrompida no meio da noite, enquanto ele dormia e caía verticalmente transformando-se em notícia. Ali na sala de Zé Lino, ninguém era dado a olhos úmidos, o mais débil, nesse departamento, era eu mesmo, que não sendo poeta tinha menos compromisso com o rigor que a arte cria e exige.
Mas sabia que Mário, se estivesse nos vendo, não perdoaria o olhar úmido de ninguém. Não há brutalidade em nosso silêncio, mas uma cúmplice espera pela voz que continua: ""Till change hath broken down? All things save Beauty alone".
O ""alone" final é redondo, cavo, espetacular. Fica ressoando (até que ponto a obra de Pound não é exatamente esse ressoar de sons e signos?).
Então Zé Lino comanda a fita para mais adiante, o rolo gira alucinado, a voz se transforma em miados de um gato histérico, não articulado. Além de Pound, Mário gravara naquela fita alguns poemas de Fernando Pessoa.
A fita corre no gravador, e penso na absurda caixa-preta do avião caído em Lima, que não fora encontrada, mas cujos ruídos, também alucinados, jamais explicariam a morte de Mário. A piada seria macabra: os técnicos em acidentes aéreos -pois os há, e muitos- encontrariam o gravador do Zé Lino entre os destroços, rolariam a fita para saber o que se passara com o avião antes do choque com a montanha.
Os pesquisadores da Morte fariam um silêncio igual ao nosso, mas com outro sentido. E não entenderiam o que havia de vida naqueles ruídos. Imagino, ainda, o que restou de Mário penetrando na eternidade como um fantasma-só-voz, enchendo o vazio do nada com os versos de Fernando Pessoa que agora ouvimos, com assombrada verdade: ""O monstrengo que está no fim do mar/ na noite de breu ergueu-se a voar;/ a roda da nau voou três vezes/ voou três vezes a chiar...".
Bebo mais um gole de uísque, procuro espantar a imagem que me vem súbita e imerecida. Os olhos claros do Mário, avermelhados pelo sono que se prolongaria para sempre, mesmo assim surpreendidos e inquietos: ""De quem são as velas onde me roço? De quem as quilhas que vejo e ouço?/ disse o monstrengo, e rodou três vezes,/ três vezes rodou imundo e grosso...".
Ali na sala estamos de cabeça baixa, a voz de Mário -perdido corpo não achado imundo e grosso- três vezes fala e três vezes repete: ""(...) do leme as mãos ergueu/ três vezes ao leme as repreendeu/ e disse no fim de tremer três vezes:/ Aqui ao leme sou mais do que eu...".
Sinto que estamos todos serenos, serenos mas crispados, ouvindo Mário Faustino recitar um poema que, afinal, podia ser dele, de suas quilhas e de suas horas. Percebo que a hora é a chave de seus versos e de sua vida.
De qualquer forma, como naqueles quartetos finais de Beethoven, a gente espera com angústia que tudo acabe logo e que a vida volte a ser prosaica e sem cor, na dimensão de nossa miséria, no ritmo de nossa mediocridade. ""Quem vem poder o que só eu posso/ que moro onde nunca ninguém me visse/ e escorro os medos do mar sem fundo?"
A fita escorrega no rolo e estanca bruscamente. Bruscamente voltamos a conversar, o gravador é agora um corpo sem alma, um eletrodoméstico como uma geladeira, um aspirador de pó. O poeta está encarcerado naquele redondo e pequenino esquife, ali repousam seu gosto e seu sopro. Fica difícil acreditar que naquele carretel há naus destroçadas, a noite de breu, imunda e grossa, na qual, sem deixar vestígios, desapareceram a Voz e a Hora.


Com pequenas modificações, esta crônica foi publicada logo após o desaparecimento do poeta, no início dos anos 60.


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