|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ
Woyzeck e a febre da alienação
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Muitas obras só ganham reconhecimento décadas ou
séculos depois de terem sido escritas. No caso de um autor como
o alemão Georg Büchner, esse
atraso é compreensível.
Nascido em 1813, Büchner morreu de tifo em 1837, aos 23 anos,
deixando apenas uma novela
("Lenz"), um panfleto político
("O Mensageiro de Hesse", escrito em parceria com Friedrich
Weidig) e três peças teatrais: "A
Morte de Danton", "Leonce e Lena" e "Woyzeck", que acaba de
ser publicada pela editora Hedra,
com tradução de Tércio Redondo, e que será lançada em maio
pela Perspectiva numa adaptação
em verso do escritor e jornalista
Fernando Marques.
Mas a morte prematura só explica em parte a consagração tardia de Büchner. Afinal, seu reconhecimento como um clássico do
teatro alemão se deu justamente
por causa de "Woyzeck", um texto inacabado, do qual existem diferentes versões. Considerada
precursora do expressionismo, a
peça não foi nem sequer incluída
na edição das obras do escritor
promovida em 1850 por seu irmão, Ludwig, que considerava o
manuscrito ilegível.
Aliás, o trabalho de reconstituição do original, feito em 1875 por
Karl Emil Franzos, acabou por gerar um erro: inicialmente, pensou-se que a peça se chamasse
"Wozzeck" e foi esse título que o
compositor Alban Berg deu a sua
ópera baseada em Büchner.
Essas informações, detalhadas
no prefácio do tradutor Tércio
Redondo, sugerem que o inacabamento de "Woyzeck" está na
raiz de sua permanência. O Büchner de "A Morte de Danton" já é
um romântico que ironiza o romantismo, misturando os ideais
políticos do Iluminismo a uma visão caricatural do idealismo alemão: sua peça sobre a Revolução
Francesa mostra o descompasso
que se interpõe entre os ideais libertários dos jacobinos e o cortejo
de cadáveres deixados pelo ritmo
desenfreado dos acontecimentos.
Nesse sentido, Büchner é um materialista e um crítico de Hegel,
dessa religião da história que reduz acidentes coletivos e sofrimentos individuais à marcha abstrata do espírito.
"Woyzeck", porém, vai bem
além desse dispositivo estilístico
(comum ao romantismo e ao naturalismo) em que a narrativa
"organiza" a matéria narrada, impondo forma e sentido ao caos da
história. Em "Woyzeck", a dispersão da realidade está incorporada
à própria estrutura da peça, composta por diálogos elípticos e por
cenas curtas, abruptas, muitas delas compostas por uma única frase.
Esse tom fragmentário se deve,
sem dúvida, ao caráter incompleto da obra. Mas só em parte, pois
também o tema da tragédia pressupõe essa concentração dramática. "Woyzeck" conta a história
(inspirada em um acontecimento
real) do soldado que comete um
crime passional após as humilhações que lhe são impostas pelo capitão de seu regimento e pelo
amante de sua mulher. O grande
tema que percorre a peça, no entanto, é a alienação, encarnada
tanto na figura do médico que usa
Woyzeck como cobaia quanto no
progressivo mergulho do protagonista em uma esfera onírica, na
febre que turva sua visão e o conduz ao assassinato.
Woyzeck é "coisificado" pelas
palavras dos outros e pelas instituições. O fato de ele ser um dos
primeiros personagens proletários da história da literatura faz de
Büchner um autor marxista
"avant la lettre"; as fontes populares da peça, em que se misturam
cantigas folclóricas e citações da
Bíblia luterana (em especial o
Apocalipse), reforçam esse vínculo a uma classe que começa a
emergir na cena histórica.
E é justamente essa oscilação
entre o popular e o expressionista,
entre materialismo e metafísica,
que dá sabor a Zé, a recriação em
verso de Fernando Marques, que,
como se vê pelo título, transforma
Woyzeck em um "zé-ninguém"
fiel à tradição popular do teatro
musical brasileiro (Oduvaldo
Vianna Filho, Dias Gomes, Chico
Buarque, Paulo Pontes). Tradição, enfim, que dialoga diretamente com uma vertente do teatro alemão (as óperas-cabaré de
Kurt Weill e Brecht) que é herdeira de Büchner, fundindo lirismo e
engajamento político.
Woyzeck
Autor: Georg Büchner
Tradução: Tércio Redondo
Editora: Hedra
Quanto: R$ 31 (120 págs.)
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: Livros/lançamentos - Geopolítica: Guerra no Iraque traz o país de volta às prateleiras Índice
|