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São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

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RODAPÉ

Woyzeck e a febre da alienação

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Muitas obras só ganham reconhecimento décadas ou séculos depois de terem sido escritas. No caso de um autor como o alemão Georg Büchner, esse atraso é compreensível.
Nascido em 1813, Büchner morreu de tifo em 1837, aos 23 anos, deixando apenas uma novela ("Lenz"), um panfleto político ("O Mensageiro de Hesse", escrito em parceria com Friedrich Weidig) e três peças teatrais: "A Morte de Danton", "Leonce e Lena" e "Woyzeck", que acaba de ser publicada pela editora Hedra, com tradução de Tércio Redondo, e que será lançada em maio pela Perspectiva numa adaptação em verso do escritor e jornalista Fernando Marques.
Mas a morte prematura só explica em parte a consagração tardia de Büchner. Afinal, seu reconhecimento como um clássico do teatro alemão se deu justamente por causa de "Woyzeck", um texto inacabado, do qual existem diferentes versões. Considerada precursora do expressionismo, a peça não foi nem sequer incluída na edição das obras do escritor promovida em 1850 por seu irmão, Ludwig, que considerava o manuscrito ilegível.
Aliás, o trabalho de reconstituição do original, feito em 1875 por Karl Emil Franzos, acabou por gerar um erro: inicialmente, pensou-se que a peça se chamasse "Wozzeck" e foi esse título que o compositor Alban Berg deu a sua ópera baseada em Büchner.
Essas informações, detalhadas no prefácio do tradutor Tércio Redondo, sugerem que o inacabamento de "Woyzeck" está na raiz de sua permanência. O Büchner de "A Morte de Danton" já é um romântico que ironiza o romantismo, misturando os ideais políticos do Iluminismo a uma visão caricatural do idealismo alemão: sua peça sobre a Revolução Francesa mostra o descompasso que se interpõe entre os ideais libertários dos jacobinos e o cortejo de cadáveres deixados pelo ritmo desenfreado dos acontecimentos. Nesse sentido, Büchner é um materialista e um crítico de Hegel, dessa religião da história que reduz acidentes coletivos e sofrimentos individuais à marcha abstrata do espírito.
"Woyzeck", porém, vai bem além desse dispositivo estilístico (comum ao romantismo e ao naturalismo) em que a narrativa "organiza" a matéria narrada, impondo forma e sentido ao caos da história. Em "Woyzeck", a dispersão da realidade está incorporada à própria estrutura da peça, composta por diálogos elípticos e por cenas curtas, abruptas, muitas delas compostas por uma única frase.
Esse tom fragmentário se deve, sem dúvida, ao caráter incompleto da obra. Mas só em parte, pois também o tema da tragédia pressupõe essa concentração dramática. "Woyzeck" conta a história (inspirada em um acontecimento real) do soldado que comete um crime passional após as humilhações que lhe são impostas pelo capitão de seu regimento e pelo amante de sua mulher. O grande tema que percorre a peça, no entanto, é a alienação, encarnada tanto na figura do médico que usa Woyzeck como cobaia quanto no progressivo mergulho do protagonista em uma esfera onírica, na febre que turva sua visão e o conduz ao assassinato.
Woyzeck é "coisificado" pelas palavras dos outros e pelas instituições. O fato de ele ser um dos primeiros personagens proletários da história da literatura faz de Büchner um autor marxista "avant la lettre"; as fontes populares da peça, em que se misturam cantigas folclóricas e citações da Bíblia luterana (em especial o Apocalipse), reforçam esse vínculo a uma classe que começa a emergir na cena histórica.
E é justamente essa oscilação entre o popular e o expressionista, entre materialismo e metafísica, que dá sabor a Zé, a recriação em verso de Fernando Marques, que, como se vê pelo título, transforma Woyzeck em um "zé-ninguém" fiel à tradição popular do teatro musical brasileiro (Oduvaldo Vianna Filho, Dias Gomes, Chico Buarque, Paulo Pontes). Tradição, enfim, que dialoga diretamente com uma vertente do teatro alemão (as óperas-cabaré de Kurt Weill e Brecht) que é herdeira de Büchner, fundindo lirismo e engajamento político.


Woyzeck
    
Autor: Georg Büchner
Tradução: Tércio Redondo
Editora: Hedra
Quanto: R$ 31 (120 págs.)


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