UOL


São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

Carandiru, Iraque e dr. Gupta

Foi uma semana de cão. Começou com um coronel norte-americano declarando a seguinte frase no meio dos escombros de Bagdá: "É tudo nosso (we own it all)". Os bombardeios são "excitantes", disse um repórter da MSNBC. Um outro repórter da mesma rede definiu um avião de caça como o seu "predileto". Num arroubo orgásmico, confessou que estava enamorado ("in love") por aquele aparelho.
Stanley Kubrick, que anunciou esse gozo belicista em "Doutor Fantástico", deve estar dando risadas lá do alto. Ele provavelmente não acharia a menor graça, no entanto, no que aconteceu com o dr. Gupta. Sanjay Gupta é um daqueles médicos virtuais que aparecem na CNN. Botou a profissão de lado para virar o jornalista de plantão da rede na área medical.
Por conta da guerra, Gupta deixou de falar de regime e viajou com um batalhão da Marinha norte-americana para o Iraque. Esse batalhão tem o seu próprio corpo médico, que atende sintomaticamente pelo nome de "Devil Doctors" (Médicos Diabos).
Os Médicos Diabos não contam com um neurocirurgião de plantão -especialidade que vem a ser, por coincidência, a do dr. Gupta. Há poucos dias, Gupta anunciou no ar que fora convocado pelos marines para operar uma menina iraquiana de dois anos. A menina e sua mãe, apressou-se em dizer, eram passageiras de um táxi que não parou em uma barreira de controle norte-americana. Daí as balas que perfuraram os seus corpos, explicou.
Resolvida a apresentação jornalística, dr. Gupta passou à ação. Bisturi em punho, deu início à cirurgia. Aproveitou para enviar duas matérias por videofone, ao vivo e em cores, para a TV que o contrata. No final, definiu a operação como "successful" -um sucesso. Uma porta-voz da CNN, Christa Robinson, disse: "Estamos todos orgulhosos dele". Outros veículos de comunicação norte-americanos saudaram o gesto do dr. Gupta, que virou uma celebridade do dia para a noite.
Um detalhe: a criança morreu. Diferentemente do que Gupta afirmara no ar, não era uma menina, e sim um menino.
Foi pensando nesse absurdo que fui assistir a "Carandiru", de Hector Babenco, numa projeção que ocorreu nesta semana nos Estados Unidos, onde trabalho na montagem de um filme. Impossível não lembrar que Drauzio Varella, médico que escreveu "Estação Carandiru", o livro que deu origem ao longa de Babenco, agiu de forma diametralmente oposta ao doutor da CNN ao retratar o cárcere. Uma das características mais marcantes do seu livro é justamente a forma isenta com que descreveu as inúmeras histórias que ouviu dos detentos. Varella jamais se colocou no papel de protagonista -ao contrário de Gupta. Produziu uma narrativa seca e desadjetivada, de uma força expressiva incomum.
Antes de começar a sessão, fiquei me perguntando como um filme inspirado em "Estação Carandiru" seria compreendido por uma platéia cada vez mais acostumada a narrativas que, tanto na TV como no cinema, procuram sistematicamente dividir o mundo entre o bem e o mal.
Começa o filme. Estamos, de cara, em um outro universo. Uma briga entre detentos. Um rapaz descobre que a mãe foi quem contratou o homem que assassinou seu pai e que ele agora reencontra atrás das grades. Uma faca cai no chão. Não é de ninguém, é de todos. Como o filme, que não heroifica o médico e opta por enfocar um grande número de protagonistas. Percebe-se pouco a pouco que, a exemplo do livro, o que está em jogo em "Carandiru" é a humanização dos personagens que estão à nossa frente. Desde a largada, a opção narrativa é clara: a câmera está atrás das grades, com os presos. Quem quiser que acompanhe.
Não há deuses nem diabos nessa terra sem sol. Nem o bem nem o mal absolutos. Daí, talvez, a sensação inicial de que a platéia a meu lado está atônita. Essa não é, para início de conversa, uma narrativa que segue modelos hollywoodianos. A arquitetura é esfacelada, não há um herói a acompanhar, o desfecho trágico não é redentor. Mas, pouco a pouco, percebe-se que o público acompanha as diversas histórias, comunga com os personagens. Como se a distância entre os homens retratados no filme e os espectadores não fosse tão grande quanto parecia no início.
Acaba o filme. Silêncio na sala. A maioria das pessoas não se move até os créditos finais. Na saída do cinema, o assunto das conversas deixa de ser o Iraque.
Como "Ônibus 174" e "Cidade de Deus", "Carandiru" investiga a grande tragédia social brasileira. O ótimo documentário de José Padilha, co-dirigido por Felipe Lacerda, mostra o quanto essa questão é extraordinariamente complexa. "Cidade de Deus", filme de Fernando Meirelles, co-dirigido por Katia Lund, se fundamenta na vitalidade e talento dos jovens atores oriundos das comunidades que retrata. "Carandiru" olha para o cárcere sem demonizá-lo. Filme obrigatório, tanto por suas qualidades como pela importância do debate que ele começa a gerar entre aqueles que o defendem ou não.


Texto Anterior: Festival é tudo verdade: "Exílio em Sedan" revela "segredo atrás da porta"
Próximo Texto: Panorâmica - Música: TV exibirá especial sobre Michael Jackson
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.