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WALTER SALLES
Carandiru, Iraque e dr. Gupta
Foi uma semana de cão. Começou com um coronel norte-americano declarando a seguinte frase no meio dos escombros de Bagdá: "É tudo nosso (we
own it all)". Os bombardeios são
"excitantes", disse um repórter da
MSNBC. Um outro repórter da
mesma rede definiu um avião de
caça como o seu "predileto". Num
arroubo orgásmico, confessou
que estava enamorado ("in love")
por aquele aparelho.
Stanley Kubrick, que anunciou
esse gozo belicista em "Doutor
Fantástico", deve estar dando risadas lá do alto. Ele provavelmente não acharia a menor graça, no entanto, no que aconteceu
com o dr. Gupta. Sanjay Gupta é
um daqueles médicos virtuais que
aparecem na CNN. Botou a profissão de lado para virar o jornalista de plantão da rede na área
medical.
Por conta da guerra, Gupta deixou de falar de regime e viajou
com um batalhão da Marinha
norte-americana para o Iraque.
Esse batalhão tem o seu próprio
corpo médico, que atende sintomaticamente pelo nome de "Devil
Doctors" (Médicos Diabos).
Os Médicos Diabos não contam
com um neurocirurgião de plantão -especialidade que vem a
ser, por coincidência, a do dr.
Gupta. Há poucos dias, Gupta
anunciou no ar que fora convocado pelos marines para operar
uma menina iraquiana de dois
anos. A menina e sua mãe, apressou-se em dizer, eram passageiras
de um táxi que não parou em
uma barreira de controle norte-americana. Daí as balas que perfuraram os seus corpos, explicou.
Resolvida a apresentação jornalística, dr. Gupta passou à
ação. Bisturi em punho, deu início à cirurgia. Aproveitou para
enviar duas matérias por videofone, ao vivo e em cores, para a TV
que o contrata. No final, definiu a
operação como "successful"
-um sucesso. Uma porta-voz da
CNN, Christa Robinson, disse:
"Estamos todos orgulhosos dele".
Outros veículos de comunicação
norte-americanos saudaram o
gesto do dr. Gupta, que virou uma
celebridade do dia para a noite.
Um detalhe: a criança morreu.
Diferentemente do que Gupta
afirmara no ar, não era uma menina, e sim um menino.
Foi pensando nesse absurdo que
fui assistir a "Carandiru", de Hector Babenco, numa projeção que
ocorreu nesta semana nos Estados Unidos, onde trabalho na
montagem de um filme. Impossível não lembrar que Drauzio Varella, médico que escreveu "Estação Carandiru", o livro que deu
origem ao longa de Babenco, agiu
de forma diametralmente oposta
ao doutor da CNN ao retratar o
cárcere. Uma das características
mais marcantes do seu livro é justamente a forma isenta com que
descreveu as inúmeras histórias
que ouviu dos detentos. Varella
jamais se colocou no papel de protagonista -ao contrário de Gupta. Produziu uma narrativa seca
e desadjetivada, de uma força expressiva incomum.
Antes de começar a sessão, fiquei me perguntando como um
filme inspirado em "Estação Carandiru" seria compreendido por
uma platéia cada vez mais acostumada a narrativas que, tanto
na TV como no cinema, procuram sistematicamente dividir o
mundo entre o bem e o mal.
Começa o filme. Estamos, de cara, em um outro universo. Uma
briga entre detentos. Um rapaz
descobre que a mãe foi quem contratou o homem que assassinou
seu pai e que ele agora reencontra
atrás das grades. Uma faca cai no
chão. Não é de ninguém, é de todos. Como o filme, que não heroifica o médico e opta por enfocar
um grande número de protagonistas. Percebe-se pouco a pouco
que, a exemplo do livro, o que está
em jogo em "Carandiru" é a humanização dos personagens que
estão à nossa frente. Desde a largada, a opção narrativa é clara: a
câmera está atrás das grades, com
os presos. Quem quiser que acompanhe.
Não há deuses nem diabos nessa terra sem sol. Nem o bem nem
o mal absolutos. Daí, talvez, a
sensação inicial de que a platéia a
meu lado está atônita. Essa não é,
para início de conversa, uma narrativa que segue modelos hollywoodianos. A arquitetura é esfacelada, não há um herói a acompanhar, o desfecho trágico não é
redentor. Mas, pouco a pouco,
percebe-se que o público acompanha as diversas histórias, comunga com os personagens. Como se a
distância entre os homens retratados no filme e os espectadores
não fosse tão grande quanto parecia no início.
Acaba o filme. Silêncio na sala.
A maioria das pessoas não se move até os créditos finais. Na saída
do cinema, o assunto das conversas deixa de ser o Iraque.
Como "Ônibus 174" e "Cidade
de Deus", "Carandiru" investiga
a grande tragédia social brasileira. O ótimo documentário de José
Padilha, co-dirigido por Felipe
Lacerda, mostra o quanto essa
questão é extraordinariamente
complexa. "Cidade de Deus", filme de Fernando Meirelles, co-dirigido por Katia Lund, se fundamenta na vitalidade e talento dos
jovens atores oriundos das comunidades que retrata. "Carandiru"
olha para o cárcere sem demonizá-lo. Filme obrigatório, tanto
por suas qualidades como pela
importância do debate que ele começa a gerar entre aqueles que o
defendem ou não.
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