São Paulo, Quarta-feira, 12 de Maio de 1999
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MARCELO COELHO
Delinquência é o sistema escolar no espelho

Por mais que se tente dourar a pílula, ir à escola todo dia nunca deixou de ser um sacrifício para a maioria das crianças. Mas, quando a escola se transforma num covil de gangues armadas, com policiais revistando os alunos antes da chamada e drogas correndo à solta, o problema ganha obviamente uma outra dimensão.
Como dizer a um adolescente que ele deve frequentar a escola, se ali há risco de vida, de atentado, de narcodependência ou no mínimo de intimidação policial? Mas não é preciso ir a extremos de retórica para perceber que o modelo escolar está falido.
Vamos esquecer por um momento as notícias de violência. O "normal" das escolas públicas já é suficientemente chocante. Não consigo entender como alguém chega ao terceiro ano do segundo grau sem saber escrever um bilhete. Terá passado no mínimo 11 anos indo à escola cinco vezes por semana -e sai vagamente preparado para o emprego de balconista, office-boy ou empacotador.
Para esses jovens -e creio que todos conhecemos casos desse tipo- imagino a sensação de vazio, de inutilidade, de clausura, que terá representado a rotina escolar. Onze anos foram gastos com uma ficção tediosa e perversa: a de que o ensino gratuito é um mecanismo de ascensão social, de cultivo dos talentos, de descoberta do mundo, de encaminhamento para uma vida profissional satisfatória.
Claro que a alternativa -ir para a rua- é ainda pior. Mas é como se a "rua", a delinquência, fosse pouco a pouco invadindo a escola, já que na prática a instituição está entregue ao abandono.
Não me espanta, assim, que surjam gangues, tiroteios e tráfico. Mais do que expressões da agressividade natural do ser humano ou da tempestade de hormônios que assola a adolescência, fenômenos assim tendem a aparecer, creio, em função da crise motivacional causada pela própria escola. Surgem porque não há nada de útil, de interessante ou de recompensador a fazer lá dentro.
Para a grande maioria dos jovens de classe baixa, é notório que as esperanças de sucesso se resumem ao esporte e à carreira artística. Esperanças que, de resto, frustram-se rapidamente. Enquanto isso, o ensino público vai-se tornando uma farsa obrigatória.
Não digo, claro, que não adiante nada. Mas adianta tão pouco, que esse seu estado de obrigatoriedade inútil, a violência institucional da situação e a desvalia de tudo talvez inspirem o desejo de vandalizar, de responder de forma concreta, pessoal e cega à irracionalidade impessoal, à ineficiência estabelecida, à abstração estéril do sistema escolar vigente.
Expresso desse modo, o raciocínio talvez seja radical demais. Pode-se contestá-lo de vários modos. Em primeiro lugar, gangues, drogas e barbaridades de todo tipo mobilizam também os adolescentes de classe média, e não apenas quem vive a falência do ensino público. Em segundo lugar, se a atitude dos jovens é reação a alguma coisa, não se trata apenas de revolta contra o sistema escolar, mas de um reflexo da violência da sociedade como um todo e, sem dúvida, daquela veiculada nos meios de comunicação.
Outros aspectos a ponderar. Gangues costumam lutar entre si, não contra o poder instituído. O fenômeno tampouco é peculiar ao sistema educacional brasileiro; nos Estados Unidos (não que a escola seja grande coisa lá) tudo é muito pior. Por fim, antes que se comece a falar de uma crise geral da civilização, basta lembrar as rixas de rua em "Romeu e Julieta", de Shakespeare, para notar que "delinquência juvenil" e desajustes não são problemas típicos da sociedade de massas moderna.
No livro "Texto/Contexto II" (editora Perspectiva), do ensaísta Anatol Rosenfeld (1912-1973), há dois artigos sobre gangues de adolescentes. Publicados originalmente há mais de 40 anos, fazem crer que não há novidade nenhuma em tudo o que se diz hoje sobre o tema. Há mesmo coincidências sinistras de pormenor: o hábito de pôr fogo em indigentes, por exemplo, já se registrava em 1958.
Tanto Rosenfeld quanto o educador Antonio Gomes da Costa, em entrevista publicada segunda-feira na Folha, apontam a "busca de identidade" como um dos motivos para a organização das gangues -podem-se incluir aqui torcidas organizadas, seitas demoníacas ou turmas de bairro, pouco importa.
É precisamente em torno dessa questão da identidade que, talvez, possamos voltar ao raciocínio original. Se a escola não funciona, se falha o lugar onde o adolescente poderia encontrar meios de autovalorização, é previsível que ele crie suas próprias válvulas de escape. E que, na procura de reconhecimento, um delinquente imite outro, reproduzindo a última barbaridade que apareceu na televisão, para também aparecer por sua vez.
As gangues são hierarquizadas, rivalizam entre si, oferecem satisfação narcísica e condições de exercício de poder. Competitividade, coerção, recompensas, irracionalidade e vazio: nesses aspectos, reproduzem como num espelho o próprio sistema escolar que conhecemos.


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