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MARCELO COELHO
Delinquência é o sistema escolar no espelho
Por mais que se tente dourar a
pílula, ir à escola todo dia nunca deixou de ser um sacrifício
para a maioria das crianças.
Mas, quando a escola se transforma num covil de gangues
armadas, com policiais revistando os alunos antes da chamada e drogas correndo à solta, o problema ganha obviamente uma outra dimensão.
Como dizer a um adolescente
que ele deve frequentar a escola, se ali há risco de vida, de
atentado, de narcodependência ou no mínimo de intimidação policial? Mas não é preciso
ir a extremos de retórica para
perceber que o modelo escolar
está falido.
Vamos esquecer por um momento as notícias de violência.
O "normal" das escolas públicas já é suficientemente chocante. Não consigo entender
como alguém chega ao terceiro
ano do segundo grau sem saber
escrever um bilhete. Terá passado no mínimo 11 anos indo à
escola cinco vezes por semana
-e sai vagamente preparado
para o emprego de balconista,
office-boy ou empacotador.
Para esses jovens -e creio
que todos conhecemos casos
desse tipo- imagino a sensação de vazio, de inutilidade, de
clausura, que terá representado a rotina escolar. Onze anos
foram gastos com uma ficção
tediosa e perversa: a de que o
ensino gratuito é um mecanismo de ascensão social, de cultivo dos talentos, de descoberta
do mundo, de encaminhamento para uma vida profissional
satisfatória.
Claro que a alternativa -ir
para a rua- é ainda pior. Mas
é como se a "rua", a delinquência, fosse pouco a pouco invadindo a escola, já que na prática a instituição está entregue
ao abandono.
Não me espanta, assim, que
surjam gangues, tiroteios e tráfico. Mais do que expressões da
agressividade natural do ser
humano ou da tempestade de
hormônios que assola a adolescência, fenômenos assim tendem a aparecer, creio, em função da crise motivacional causada pela própria escola. Surgem porque não há nada de
útil, de interessante ou de recompensador a fazer lá dentro.
Para a grande maioria dos jovens de classe baixa, é notório
que as esperanças de sucesso se
resumem ao esporte e à carreira artística. Esperanças que, de
resto, frustram-se rapidamente. Enquanto isso, o ensino público vai-se tornando uma farsa obrigatória.
Não digo, claro, que não
adiante nada. Mas adianta tão
pouco, que esse seu estado de
obrigatoriedade inútil, a violência institucional da situação e a desvalia de tudo talvez
inspirem o desejo de vandalizar, de responder de forma concreta, pessoal e cega à irracionalidade impessoal, à ineficiência estabelecida, à abstração estéril do sistema escolar
vigente.
Expresso desse modo, o raciocínio talvez seja radical demais. Pode-se contestá-lo de
vários modos. Em primeiro lugar, gangues, drogas e barbaridades de todo tipo mobilizam
também os adolescentes de
classe média, e não apenas
quem vive a falência do ensino
público. Em segundo lugar, se a
atitude dos jovens é reação a
alguma coisa, não se trata apenas de revolta contra o sistema
escolar, mas de um reflexo da
violência da sociedade como
um todo e, sem dúvida, daquela veiculada nos meios de comunicação.
Outros aspectos a ponderar.
Gangues costumam lutar entre
si, não contra o poder instituído. O fenômeno tampouco é peculiar ao sistema educacional
brasileiro; nos Estados Unidos
(não que a escola seja grande
coisa lá) tudo é muito pior. Por
fim, antes que se comece a falar
de uma crise geral da civilização, basta lembrar as rixas de
rua em "Romeu e Julieta", de
Shakespeare, para notar que
"delinquência juvenil" e desajustes não são problemas típicos da sociedade de massas moderna.
No livro "Texto/Contexto II"
(editora Perspectiva), do ensaísta Anatol Rosenfeld (1912-1973), há dois artigos sobre
gangues de adolescentes. Publicados originalmente há mais
de 40 anos, fazem crer que não
há novidade nenhuma em tudo
o que se diz hoje sobre o tema.
Há mesmo coincidências sinistras de pormenor: o hábito de
pôr fogo em indigentes, por
exemplo, já se registrava em
1958.
Tanto Rosenfeld quanto o
educador Antonio Gomes da
Costa, em entrevista publicada
segunda-feira na Folha, apontam a "busca de identidade"
como um dos motivos para a
organização das gangues -podem-se incluir aqui torcidas
organizadas, seitas demoníacas ou turmas de bairro, pouco
importa.
É precisamente em torno dessa questão da identidade que,
talvez, possamos voltar ao raciocínio original. Se a escola
não funciona, se falha o lugar
onde o adolescente poderia encontrar meios de autovalorização, é previsível que ele crie
suas próprias válvulas de escape. E que, na procura de reconhecimento, um delinquente
imite outro, reproduzindo a última barbaridade que apareceu na televisão, para também
aparecer por sua vez.
As gangues são hierarquizadas, rivalizam entre si, oferecem satisfação narcísica e condições de exercício de poder.
Competitividade, coerção, recompensas, irracionalidade e
vazio: nesses aspectos, reproduzem como num espelho o
próprio sistema escolar que conhecemos.
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