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São Paulo, quinta-feira, 12 de junho de 2003

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"EXILADOS"

Único texto teatral escrito por James Joyce inclui ensaio de Alípio Correia de Franca Neto em volume brasileiro

Edição de peça tira autor irlandês do pedestal literário

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

A edição de Alípio Correia de Franca Neto para "Exilados", a única peça de James Joyce, é um excelente exemplo de uma tendência cada vez mais consolidada de não considerar uma peça de teatro como obra em si, em seu valor fechado literário, mas como ponto de partida para uma suposta encenação, devendo o texto assim ser publicado acompanhado por introdução e notas que possam servir de base para os vários sentidos possíveis do espetáculo.
Em um trabalho de dramaturgista, portanto, Correia abre o volume com um extenso e profundo estudo que situa James Joyce em seu tempo e "Exilados" em sua obra. Partindo de uma listagem das raras montagens da peça -desestimuladas, talvez, pelo mau juízo que os críticos joycianos costumam fazer dela, alegando um excesso de conservadorismo formal-, Correia demonstra que a peça não é indigna da revolução que Joyce promoveu no romance, por não se limitar a uma subserviência às receitas realistas de Ibsen, mas, ecoando Nietzsche e Wagner, dar margem a uma leitura simbolista que vai muito além da "tranche de vie", em uma delicada rede de alusões eruditas.
Dessa forma, assim como em "Ulysses" (obra-prima de Joyce que mostra um burguês revivendo em um dia em Dublin tudo o que Ulisses passou na "Odisséia"), "Exilados" apresentaria pelo menos duas abordagens possíveis: um quase vaudeville, nos moldes de Oscar Wilde, no qual se vê a burguesia evoluir em inteligente auto-ironia, e uma quase adaptação de Tristão e Isolda, com toda a profundidade arquetípica que isso acarreta. O que não ofusca, aliás, a dimensão psicológica dos conflitos apresentados.
Segue-se uma vivisseção do "labirinto do cérebro" no qual se confrontam Richard, o escritor prestes a ser consagrado, sua mulher Bertha, inculta e bela, o desenvolto Robert, jornalista amigo de juventude e apaixonado por Bertha, e Beatrice, intelectual capaz de inspirar Richard. Esse duplo triângulo amoroso se escoa em longas cenas, plenas de duplos e subentendidos que remetem a Tchecov, mas cuja falta de ação a torna "imprópria para o palco como a conhecemos", na análise de Ezra Pound.
Assim, quando se lê em seguida a peça, em fluida tradução, o próprio leitor pode escolher suas pistas para conhecê-la melhor, auxiliado para isso pelas notas precisas que a sucedem, e fazer sua encenação. Só então, no apêndice final, é que o leitor entra em contato com as notas de Joyce para "Exilados", quando as intenções do autor se tornam mais uma interpretação possível.
A estratégia de Correia é particularmente profícua para o caso de "Exilados", já que o palco ao qual se referia Pound já não é mais o palco de hoje, depois que Pirandello desenvolveu nele a ambiguidade entre vida e teatro, Beckett transformou-o em veículo eficaz para o fluxo de consciência e Harold Pinter levou o fio da ironia ao limite da precisão cirúrgica. Princípios que já podem ser reconhecidos na peça e que ficam agora à espera de encenação, já que essa edição faz a peça descer do pedestal de "obra-prima" para voltar a ser matéria-prima para o palco. Não há posteridade melhor para uma peça de teatro.


Exilados    
Autor: James Joyce
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 42 (224 págs.)



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