São Paulo, segunda-feira, 12 de junho de 2006

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Crítica/revista

"Teresa" tem edição dedicada a enigmas de Machado de Assis

NOEMI JAFFE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"João amava Teresa que amava Raimundo." "A primeira vez que eu fitei Teresa." "A primeira vez que eu vi Teresa." "São José deu a mão de esposo a Teresa." "D. Tereza acreditou." Cadê Teresa? Ela está novamente aqui. "Teresa", que significa "natural da terra", é também uma Revista de Literatura Brasileira, publicada pela USP, Editora 34 e Imprensa Oficial do Estado, e chega aos números 6 e 7, organizada por Hélio de Seixas Guimarães e dedicada a Machado de Assis. São mais de 500 páginas destinadas ao "bruxo do Cosme Velho", o "grande lascivo do nada". Dois anos antes do 100º aniversário de sua morte e milhares de páginas depois, o que mais há para ser dito sobre Machado? Ainda há muito. Não se pode nem se deve, sob pena de grande estrago, decifrar os mistérios machadianos. Aproximar-se deles é simplesmente aumentar a voltagem de luz que nos permite enxergar o tamanho do enigma. Mas continuam se aproximando e "descobrindo a fenda necessária" Alfredo Bosi, Alcides Villaça, João Adolfo Hansen, Sergio Paulo Rouanet, Boris Schnaiderman e outros, vasculhando os olhos enviesados, as máscaras, as dissimulações e a constatação insuportável de que somos muito mais definidos pelas contingências do que pelas convicções, muitas vezes chegando a nomear a conveniência como uma antiga certeza. Essa proximidade do centenário da morte de Machado coincide com os 50 anos da publicação de "Grande Sertão: Veredas". Machado e Rosa são os dois maiores autores da literatura brasileira. Mas, para além das datas e da grandeza, como relacionar os dois? Só mesmo por oposição complementar, porque, apesar de contrários, os dois estão sempre certos. O próprio conto de Machado, "A Igreja do Diabo", parece antever, mesmo que por ironia -essa companheira triste do bruxo- a dialética que se esconde no gume machadiano. Diante do Diabo, perplexo porque os humanos insistiam em "cometer" o bem, após ter sido oficializado o mal, diz Deus: "Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana". Onde só parece existir inocência, Machado sempre desvenda uma malícia escondida; até mesmo a malícia da própria inocência, porque para ele não há mal maior do que ser inocente. Guimarães Rosa, ao contrário, descobre uma brecha de inocência onde só se vê a hipocrisia. Talvez o Deus de Machado, que só compreende o desejo de generosidade humano como uma negação ao mal legalizado, não tenha compreendido a generosidade gratuita que Rosa via. Não é à toa que o mineiro, como nos conta Cony, dizia que Machado não fazia nada mais do que "uma desoladora dissecação do egoísmo, e, o que é pior, da mais desprezível forma de egoísmo: o egoísmo dos introvertidos inteligentes". O fato é que nós, na volúpia da inteligência, somos uma caravana de egoístas. Mas é fato também (e talvez os fatos aqui sejam o que menos interessa) que nós, nessa marcha do nada, topamos todos os dias, "nas horinhas de descuido", com uma canção antiga, um olhar absorto, uma atenção inesperada.


NOEMI JAFFE é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Hedra)

TERESA
Editora:
Imprensa Oficial do Estado e Editora 34
Quanto: R$ 35 (510 págs.)


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