|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SHOW - CRÍTICA
Maria Bethânia afronta o "bom gosto"
BIA ABRAMO
especial para a Folha
Qual é exatamente o grande escândalo em interpretar "É o
Amor", de Zezé di Camargo? Tudo
o que tem se falado sobre Maria
Bethânia, seu disco e show recentes, "A Força que Nunca Seca",
passa por esse nó. Antes de ir ao
show, é preciso se deter um pouco
aí. Maria Bethânia está pagando
um preço razoavelmente alto por
ser, a sua maneira, coerente. Ela
sempre desafiou o "bom-gostismo", a doença classista da MPB
que separa o "popular brega" do
"popular chique".
Seu estilo de cantar dramático e
teatral confrontou desde sempre o
padrão despojado instituído pela
Bossa Nova. Contemporânea e irmã do Tropicalismo, ela nunca
partilhou do fascínio pela provocação conceitual, embora segundo
conta Caetano em "Verdade Tropical", tenha sido a primeira a
prestar atenção à Jovem Guarda.
Nos anos 70, enquanto o melhor
e o pior da MPB digladiavam-se
com a censura por meio de metáforas ou aprofundavam o deslumbre do desbunde, ela iniciava um
mergulho pelo romantismo, que a
levou de Antonio Marcos a Gonzaguinha e lhe valeu a pecha de "cantora de churrascaria".
Os roqueiros anos 80/90 encontraram Bethânia, impávida, explodindo corações, relendo Roberto
Carlos, não o Roberto Carlos jovem e pop, mas o romântico cafona e de meia-idade.
E agora isso, o aceno para o sertanejo, uma música popular que não
ousa aspirar ao título de MPB, mas
nem por isso deixa de ser uma música popular e brasileira, identificada (justamente) com o Brasil
pós-Collor, demonizada (injustamente) por ser o brega do brega, o
fim do mundo.
Na verdade, não é uma força estranha que a faz incorporar esse
dado novo da realidade social e estética do Brasil do Real. É, antes,
uma constatação de que esse é o
Brasil e a música que, gostemos ou
não, temos aqui e agora.
E não será ela, Bethânia, artista
que realmente almeja o título de
popular, no sentido de ter um público amplo e abrangente, a voltar
as costas para esse fato. Portanto,
será ela, Bethânia, a primeira a tratar disso com respeito (Caetano recorrendo novamente a Peninha é
outra história).
Não que "É o Amor" por isso deixe de ser a canção simplória que de
fato é, nem que a escolha de Bethânia seja livre de algum tipo de cálculo (mas o é todo e qualquer movimento em música que tem de tocar no rádio, vender disco, atrair
público?).
Não teria sido assim ou muito
parecido quando gravou "Como
Vai Você", de Antonio Marcos, ou
mesmo o Roberto Carlos de "motel", também eles identificados
com o comercialismo e com o conformismo pequeno-burguês da
época do milagre e do regime militar? Qual é, exatamente, a grande
diferença?
Talvez nenhuma. Em "A Força
que Nunca Seca", o show, as personalíssimas escolhas de Bethânia
revelam-se com clareza. Desde o
início, ela avisa que o espetáculo é
o primado da emoção, das "Emoções" - e não é disso que trata a
música popular, qualquer uma?
Em seguida, refaz o percurso mítico/nostálgico da descoberta do
"interior". Sai do mar enobrecido
de Caymmi para vários sertões
("Trenzinho Caipira", "Luar do
Sertão", "Azulão"), todos eles de
alguma forma idealizados e bucólicos, primos arcaicos do sertão rico e triunfante de Zezé di Camargo. Por que será que o sertanejo
humilde de "Romaria" é mais palatável do que os que afirmam "É o
Amor"? Será que não é justamente
porque o primeiro "sabe o seu lugar", lá quietinho no fim do mundo, e os segundos tomaram aquele
que imaginávamos pertencer por
direito ao nosso "bom gosto"?
Mais para frente, Bethânia promove uma operação de desrecalque, coisa na qual sua voz de rainha é mestra, quando situa a canção de Zezé di Camargo em seu
bloco romântico.
Ao lado de Antonio Marcos
("Como Vai Você"), Maysa ("Resposta"), Sueli Costa ("Encouraçado"), Roberto e Erasmo Carlos
("Costumes", "As Flores do Jardim da Nossa Casa") e, ousadia das
ousadias, Chico Buarque ("Olhos
nos Olhos"), "É o Amor" torna-se
o que é, apenas mais uma canção
de amor, como tantas outras, com
toda a tontice e a emoção, a beleza
e o ridículo próprios do falar de
amor.
Ao mesmo tempo reinseridos no
sertão da música popular e na tradição dos arroubos românticos, "É
o Amor" e Zezé di Camargo surgem destacados do mundo cão em
"A Força que Nunca Seca" pelo
canto preciso, embora comovidíssimo, de Bethânia. Talvez o mundo
esteja mesmo no fim, mas, que
raios, também há o amor e Bethânia para cantá-lo.
Avaliação:
Show: A Força que Nunca Seca
Artista: Maria Bethânia
Onde: Palace (av. dos Jamaris, 213, Moema,
tel. 531-4900)
Quando: qui, às 21h30, sex. e sáb., às 22h, e
dom., às 18h; até 20 de junho
Quanto: R$ 30 a R$ 70
Texto Anterior: Televisão: Cultura se abre à antropologia popular de Câmara Cascudo Próximo Texto: Música: Trama lança catálogo da Matador no Brasil Índice
|