São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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SHOW - CRÍTICA
Maria Bethânia afronta o "bom gosto"

BIA ABRAMO
especial para a Folha

Qual é exatamente o grande escândalo em interpretar "É o Amor", de Zezé di Camargo? Tudo o que tem se falado sobre Maria Bethânia, seu disco e show recentes, "A Força que Nunca Seca", passa por esse nó. Antes de ir ao show, é preciso se deter um pouco aí. Maria Bethânia está pagando um preço razoavelmente alto por ser, a sua maneira, coerente. Ela sempre desafiou o "bom-gostismo", a doença classista da MPB que separa o "popular brega" do "popular chique".
Seu estilo de cantar dramático e teatral confrontou desde sempre o padrão despojado instituído pela Bossa Nova. Contemporânea e irmã do Tropicalismo, ela nunca partilhou do fascínio pela provocação conceitual, embora segundo conta Caetano em "Verdade Tropical", tenha sido a primeira a prestar atenção à Jovem Guarda.
Nos anos 70, enquanto o melhor e o pior da MPB digladiavam-se com a censura por meio de metáforas ou aprofundavam o deslumbre do desbunde, ela iniciava um mergulho pelo romantismo, que a levou de Antonio Marcos a Gonzaguinha e lhe valeu a pecha de "cantora de churrascaria".
Os roqueiros anos 80/90 encontraram Bethânia, impávida, explodindo corações, relendo Roberto Carlos, não o Roberto Carlos jovem e pop, mas o romântico cafona e de meia-idade.
E agora isso, o aceno para o sertanejo, uma música popular que não ousa aspirar ao título de MPB, mas nem por isso deixa de ser uma música popular e brasileira, identificada (justamente) com o Brasil pós-Collor, demonizada (injustamente) por ser o brega do brega, o fim do mundo.
Na verdade, não é uma força estranha que a faz incorporar esse dado novo da realidade social e estética do Brasil do Real. É, antes, uma constatação de que esse é o Brasil e a música que, gostemos ou não, temos aqui e agora.
E não será ela, Bethânia, artista que realmente almeja o título de popular, no sentido de ter um público amplo e abrangente, a voltar as costas para esse fato. Portanto, será ela, Bethânia, a primeira a tratar disso com respeito (Caetano recorrendo novamente a Peninha é outra história).
Não que "É o Amor" por isso deixe de ser a canção simplória que de fato é, nem que a escolha de Bethânia seja livre de algum tipo de cálculo (mas o é todo e qualquer movimento em música que tem de tocar no rádio, vender disco, atrair público?).
Não teria sido assim ou muito parecido quando gravou "Como Vai Você", de Antonio Marcos, ou mesmo o Roberto Carlos de "motel", também eles identificados com o comercialismo e com o conformismo pequeno-burguês da época do milagre e do regime militar? Qual é, exatamente, a grande diferença?
Talvez nenhuma. Em "A Força que Nunca Seca", o show, as personalíssimas escolhas de Bethânia revelam-se com clareza. Desde o início, ela avisa que o espetáculo é o primado da emoção, das "Emoções" - e não é disso que trata a música popular, qualquer uma?
Em seguida, refaz o percurso mítico/nostálgico da descoberta do "interior". Sai do mar enobrecido de Caymmi para vários sertões ("Trenzinho Caipira", "Luar do Sertão", "Azulão"), todos eles de alguma forma idealizados e bucólicos, primos arcaicos do sertão rico e triunfante de Zezé di Camargo. Por que será que o sertanejo humilde de "Romaria" é mais palatável do que os que afirmam "É o Amor"? Será que não é justamente porque o primeiro "sabe o seu lugar", lá quietinho no fim do mundo, e os segundos tomaram aquele que imaginávamos pertencer por direito ao nosso "bom gosto"?
Mais para frente, Bethânia promove uma operação de desrecalque, coisa na qual sua voz de rainha é mestra, quando situa a canção de Zezé di Camargo em seu bloco romântico.
Ao lado de Antonio Marcos ("Como Vai Você"), Maysa ("Resposta"), Sueli Costa ("Encouraçado"), Roberto e Erasmo Carlos ("Costumes", "As Flores do Jardim da Nossa Casa") e, ousadia das ousadias, Chico Buarque ("Olhos nos Olhos"), "É o Amor" torna-se o que é, apenas mais uma canção de amor, como tantas outras, com toda a tontice e a emoção, a beleza e o ridículo próprios do falar de amor.
Ao mesmo tempo reinseridos no sertão da música popular e na tradição dos arroubos românticos, "É o Amor" e Zezé di Camargo surgem destacados do mundo cão em "A Força que Nunca Seca" pelo canto preciso, embora comovidíssimo, de Bethânia. Talvez o mundo esteja mesmo no fim, mas, que raios, também há o amor e Bethânia para cantá-lo.


Avaliação:     

Show: A Força que Nunca Seca Artista: Maria Bethânia Onde: Palace (av. dos Jamaris, 213, Moema, tel. 531-4900) Quando: qui, às 21h30, sex. e sáb., às 22h, e dom., às 18h; até 20 de junho Quanto: R$ 30 a R$ 70

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