São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Distúrbios do sono

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

"Armadilho" , quinto livro do inglês William Boyd a ser publicado no Brasil pela Rocco, toma como título o nome de um animal pouco conhecido entre os brasileiros para tratar de um tipo de ser humano muito conhecido de todos: aquele que age, a despeito de suas convicções, de acordo com o momento e as circunstâncias.
Um tipo que pode se revelar em qualquer país e em qualquer profissão -diplomata, executivo, jornalista, cientista etc.-, porque a sua maior vocação é a de funcionário, servindo sempre com empenho e dedicação, e sobretudo sem questionar o funcionamento da engrenagem de que faz parte.
É um velho costume literário tomar emprestada a imagem de animais para criar fábulas sobre o comportamento humano. O armadilho, como define o verbete do Caldas Aulete usado como epígrafe da edição brasileira, é um "gênero de mamíferos da ordem dos desdentados, família dos dasípodes. Difere do tatu em não ter dentes incisivos, ter os membros anteriores terminados por quatro dedos e a cauda arredondada".
O principal elemento alegórico da parábola escrita por Boyd é, no entanto, a couraça do bicho. No caso do protagonista deste romance, ela não serve para protegê-lo do mundo que o cerca -como acontece com o animal-, mas de si mesmo. Uma couraça que se interpõe entre os seus princípios e as suas ações, entre os seus valores e o mundo, entre o seu corpo mole, sem estrutura, e as suas responsabilidades, e que lhe permite seguir em frente, fazendo, sem maiores dores de consciência, o que não faria se parasse para pensar.
Lorimer Black é funcionário de uma firma associada a uma empresa de seguros. Sua função é reavaliar e reajustar os prêmios das apólices, baixando o valor das reivindicações dos segurados, mas apenas quando chega a hora de ressarci-los. Sua função é conseguir que a companhia não pague o que deve por contrato às vítimas. Como se a alegoria do armadilho ainda não fosse suficiente para retratar esse personagem, ele é obcecado por armaduras e capacetes antigos, que coleciona.
Black não é, porém, um sujeito desprezível e abominável. Descendente da diáspora dos ciganos da Europa Oriental, ele é um homem culto (um admirador da literatura francesa, de Gérard de Nerval, Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars), tem problemas pessoais (sofre de insônia e frequenta um instituto de pesquisas do sono em busca da cura), tem boas intenções e sentimentos (cuida do cachorro de uma velha vizinha) e se apaixona sincera e perdidamente por uma atriz de comerciais.
Se continua a fazer o que faz (no início do romance, ele se depara com o corpo de um cliente que se enforcou sob a pressão da perspectiva de não receber o que a seguradora lhe devia), é devido menos a uma índole desonesta (Black segue à risca todas as regras da empresa, embora elas tenham dois pesos e duas medidas) e mais à inércia da engrenagem. E, sobretudo, à couraça que interpôs entre seus valores e suas necessidades. Tanto que fica de queixo caído quando começa a suspeitar do que talvez seus patrões estejam ganhando com as transações mais escusas e à custa de seu empenho e dedicação.
Black nunca atinge o sono profundo. Sofre, segundo o especialista do instituto a que recorre, de um excesso de "sonhos lúcidos", sintomáticos de quem anseia por ter controle absoluto sobre todos os acontecimentos de sua vida. O contrário do que se passa no seu dia-a-dia de funcionário empenhado, num mundo onde impera a enganação, onde os seguros são apenas mais uma confirmação da insegurança generalizada.
Boyd, 48, não tira nenhuma conclusão disso. Ao contrário das fábulas, não reduz seu romance à ilustração de uma idéia já conhecida. A situação que apresenta é, antes, especulativa, uma forma de procurar, com humor, uma resposta para a sua própria perplexidade e incompreensão. É o que mais incomoda os leitores que estão atrás de conclusões fáceis disfarçadas de grandes revelações, os mesmos que acreditam que as companhias de seguros podem livrá-los da insegurança do mundo.


Armadilho
Armadillo     Autor: William Boyd Tradução: Roberto Grey Editora: Rocco Quanto: R$ 42 (352 págs.)




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