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RESENHA DA SEMANA
Distúrbios do sono
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
"Armadilho" , quinto livro do inglês William
Boyd a ser publicado no Brasil
pela Rocco, toma como título o
nome de um animal pouco conhecido entre os brasileiros para
tratar de um tipo de ser humano
muito conhecido de todos:
aquele que age, a despeito de
suas convicções, de acordo com
o momento e as circunstâncias.
Um tipo que pode se revelar
em qualquer país e em qualquer
profissão -diplomata, executivo, jornalista, cientista etc.-,
porque a sua maior vocação é a
de funcionário, servindo sempre com empenho e dedicação, e
sobretudo sem questionar o
funcionamento da engrenagem
de que faz parte.
É um velho costume literário
tomar emprestada a imagem de
animais para criar fábulas sobre
o comportamento humano. O
armadilho, como define o verbete do Caldas Aulete usado como epígrafe da edição brasileira,
é um "gênero de mamíferos da
ordem dos desdentados, família
dos dasípodes. Difere do tatu em
não ter dentes incisivos, ter os
membros anteriores terminados por quatro dedos e a cauda
arredondada".
O principal elemento alegórico da parábola escrita por Boyd
é, no entanto, a couraça do bicho. No caso do protagonista
deste romance, ela não serve para protegê-lo do mundo que o
cerca -como acontece com o
animal-, mas de si mesmo.
Uma couraça que se interpõe
entre os seus princípios e as suas
ações, entre os seus valores e o
mundo, entre o seu corpo mole,
sem estrutura, e as suas responsabilidades, e que lhe permite
seguir em frente, fazendo, sem
maiores dores de consciência, o
que não faria se parasse para
pensar.
Lorimer Black é funcionário
de uma firma associada a uma
empresa de seguros. Sua função
é reavaliar e reajustar os prêmios das apólices, baixando o
valor das reivindicações dos segurados, mas apenas quando
chega a hora de ressarci-los. Sua
função é conseguir que a companhia não pague o que deve
por contrato às vítimas. Como
se a alegoria do armadilho ainda
não fosse suficiente para retratar
esse personagem, ele é obcecado
por armaduras e capacetes antigos, que coleciona.
Black não é, porém, um sujeito
desprezível e abominável. Descendente da diáspora dos ciganos da Europa Oriental, ele é um
homem culto (um admirador
da literatura francesa, de Gérard
de Nerval, Guillaume Apollinaire e Blaise Cendrars), tem problemas pessoais (sofre de insônia e frequenta um instituto de
pesquisas do sono em busca da
cura), tem boas intenções e sentimentos (cuida do cachorro de
uma velha vizinha) e se apaixona sincera e perdidamente por
uma atriz de comerciais.
Se continua a fazer o que faz
(no início do romance, ele se depara com o corpo de um cliente
que se enforcou sob a pressão da
perspectiva de não receber o que
a seguradora lhe devia), é devido
menos a uma índole desonesta
(Black segue à risca todas as regras da empresa, embora elas tenham dois pesos e duas medidas) e mais à inércia da engrenagem. E, sobretudo, à couraça
que interpôs entre seus valores e
suas necessidades. Tanto que fica de queixo caído quando começa a suspeitar do que talvez
seus patrões estejam ganhando
com as transações mais escusas
e à custa de seu empenho e dedicação.
Black nunca atinge o sono
profundo. Sofre, segundo o especialista do instituto a que recorre, de um excesso de "sonhos
lúcidos", sintomáticos de quem
anseia por ter controle absoluto
sobre todos os acontecimentos
de sua vida. O contrário do que
se passa no seu dia-a-dia de funcionário empenhado, num
mundo onde impera a enganação, onde os seguros são apenas
mais uma confirmação da insegurança generalizada.
Boyd, 48, não tira nenhuma
conclusão disso. Ao contrário
das fábulas, não reduz seu romance à ilustração de uma idéia
já conhecida. A situação que
apresenta é, antes, especulativa,
uma forma de procurar, com
humor, uma resposta para a sua
própria perplexidade e incompreensão. É o que mais incomoda os leitores que estão atrás de
conclusões fáceis disfarçadas de
grandes revelações, os mesmos
que acreditam que as companhias de seguros podem livrá-los da insegurança do mundo.
Armadilho
Armadillo
Autor: William Boyd
Tradução: Roberto Grey
Editora: Rocco
Quanto: R$ 42 (352 págs.)
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