São Paulo, sábado, 12 de agosto de 2000


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VMB
MTV consagra O Rappa e estética da fome

Eduardo Knapp/Folha Imagem
Integrantes da banda O Rappa e o garoto Gigante festejam um dos seis prêmios recebidos no VMB


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

O Rappa é a banda do momento, segundo avaliação transmitida pela MTV na premiação de seu 6º Video Music Brasil, ocorrida na noite de anteontem. O clipe "A Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero)" levou seis dos sete prêmios a que concorria e obteve a rara conjunção de ser eleito por público e crítica.
Não deixa de ser colírio aos olhos -a MTV hoje é emissora amplamente bem-sucedida dentro de seus parâmetros, O Rappa é das bandas mais dignas do cenário atual e o clipe enfoca, em tom documental, a exclusão social que bombardeia o Brasil de 2000.
A consagração presta-se, além do mais, como fonte funda de reflexão sobre a confusão instalada entre feiúras e belezas do Brasil.
Pois Glauber Rocha apareceu numa das vinhetas, e é mesmo caso de evocar sua estética da fome, hoje transtornada em estética da falta de fome -a do Brasil rico da Conspiração Filmes (produtora do vídeo), de João Moreira Salles (saudado pelos vencedores), de "Central do Brasil" (filme em que Fernanda Montenegro se torna heroína ao reconduzir o nordestino ao Nordeste), de Sebastião Salgado, de Marisa Monte...
O que parece estar em curso, acima das boas intenções dos manos do Rappa, é a esterilização da miséria, e nisso a MTV entra de sola, coroando a cultura da cordialidade, a cultura do sim, da domesticação a que o mundo musical brasileiro se entrega, junto com seus outros mundos.
São tantos exemplos (pobre da atitude rock'n'roll, tão golpeada). Raimundos abriram a festa com uma versão, uau, tão "rebelde" de... "20 e Poucos Anos", de Fábio Jr.. Pedro Luís e A Parede compuseram música em louvor a Luana Piovani, a mais insossa apresentadora da história do VMB.
O pós-roqueiro Edgard Scandurra abraçou Daniela Mercury (premiada com justiça na categoria axé) para falar de música eletrônica. O bardo rebelde tropicalista se juntou à máquina de hits pagodeiros Leandro Lehart. Júnior, o de Sandy, foi o percussionista-revelação da noite. Ahã.
João Barone (ao que consta, era para ser Herbert Vianna), que um dia tocou que a esperança não vinha das antenas de TV, pagou o mico de apresentar prêmio de pagode, enquanto Ivete Sangalo decretava que "todo mundo gosta de pagode" (o público de São Paulo, inventora do pagode mauricinho, discordou e fez cinco segundos de silêncio). A pretensa homenagem a Cazuza -cantado por "rebeldes" tipo Jota Quest e Sandy & Júnior- redundou em gargalhadas constrangidas.
Os contrastes propostos pela MTV instilaram preconceito. Para que tudo ficasse como está, Lula foi equiparado à cultura de periferia do rap, o ultra-reacionário Flávio Cavalcanti reintroduziu Wilson Simonal (que nem morto encontra a paz), Clodovil e Fivelinha jogaram lama sobre a cultura gay à base de mútuas grosserias, Lilian Witte Fibe realçou o sotaque baiano de Popó, a nova gostosa da MTV passou vergonha com Zé Bonitinho.
A síndrome, aqui, era do mundo pós-geográfico (o geográfico já não existe mais), que conseguia fazer ocupar mesmo lugar no espaço as mentes cariocas "iluminadas" da Conspiração, as paulistas globalizadas da MTV, a baiana irrealista de Dani Mercury (que até ao se despedir da audiência paulistana consegue sonhar que está na Bahia, agradecendo "valeu, Salvador"), a espanhola de Pedro Almodóvar, a de lugar nenhum de Ratinho.
Ao final, dona Luana reclamou que seus 400 mil votantes não era "pequena" audiência. Ora, dona, quantos habitantes têm São Paulo e o Brasil? Quantas pessoas vêem "No Limite"? É possível abrir a boca na hora certa, não chamar urubu de meu louro e não tomar o adjetivo "pequeno" por detração? Dona MTV, o Brasil precisa tanto de seu senso crítico...
Em cenário de grossa despriorização, brilhou quem mais conseguiu preservar a dignidade -Jair Rodrigues fazendo rap, Simoninha interpretando uma canção, Capital Inicial cantando "Primeiros Erros" belamente, Rita Lee chamando Erasmo Carlos de "pai do rock", Monique Evans sendo Monique Evans, a MTV homenageando dez anos da MTV.
Eram esses que davam fio ínfimo de esperança, de que os versos de Gregório de Mattos cantados em 72 por Caetano Veloso não houvessem virado pós-fumaça. "Triste Bahia, ó quão dessemelhante", diziam. Triste, o Brasil domesticado de 2000 parece só se gostar onde tudo é igual, uniforme, coreografado, nivelado. Ave.


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