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DRAUZIO VARELLA
Espera na fila
Desde que sou criança os
doentes formam fila na porta dos hospitais. O fato é tão corriqueiro que ninguém mais liga; foi
incorporado à cultura brasileira.
No meu tempo de faculdade, a
maioria dos professores falava
num tom educado com os alunos
e elevava a voz para fazer perguntas ao doente, na cama. As mulheres todas eram dona Maria e
os homens, seu Zé, sem exceção.
No início, os alunos ficavam chocados, mas, com o passar do tempo, boa parte adotava a estupidez
dos mais velhos como norma de
conduta.
Naquele tempo, as mocinhas
que chegavam ao pronto-socorro
do Hospital das Clínicas com sangramento ginecológico provocado
por abortos clandestinos eram
submetidas à curetagem uterina
sem anestesia. Os chefes de serviço
justificavam esse procedimento,
por meio do qual o colo do útero é
pinçado, tracionado com uma
garra de metal e raspado por dentro com um instrumento em forma de pequena colher, dizendo
que se dessem anestesia o pronto-socorro ficaria mais lotado ainda.
Pareciam imaginar que, se deixassem de sentir dor, as moças
engravidariam por prazer, só para fazer curetagem nas Clínicas.
Nós, daquela geração de universitários rebeldes dos anos 60,
obedecíamos como cordeiros às
ordens superiores de curetar a
sangue-frio. Não deve doer tanto
assim, pensávamos resignados.
Os doentes que vinham ao ambulatório eram obrigados a chegar antes das oito da manhã. Todos! Quem chegasse mais tarde
voltava para casa sem atendimento. Como os médicos não podiam examinar todo mundo ao
mesmo tempo, havia gente que ia
ser atendida às 13h. Os que tinham sorte esperavam sentados
num banco de pau; os outros, em
pé, horas e horas. Eram comuns
os desmaios de fome e fraqueza
na fila.
Apesar de hoje existirem exceções, passaram-se mais de 30 anos
e pouco mudou: horas na fila para os que dependem de postos de
saúde, ambulatórios ou hospitais
públicos federais, estaduais e municipais é a rotina. Espera e, ainda de sobra, aturar má-criação.
Ninguém seria ingênuo a ponto
de supor que é fácil organizar o
atendimento médico à população
de baixa renda no território nacional e que os governantes não o
fazem por simples desinteresse. É
lógico que se trata de um problema de enorme complexidade.
Podemos até justificar a persistência teimosa das filas argumentando que são consequência inevitável do excesso de demanda
por serviços gratuitos; afinal, a
população não pára de crescer e a
pobreza, de aumentar.
Da mesma forma, a falta de
educação, que tantas vezes vai do
porteiro ao médico, pode ser explicada pelos baixos salários, que
inviabilizam a contratação de
pessoal qualificado para lidar
com o público. O "senta aí e espera", o "não posso fazer nada" e o
"volta amanhã, que hoje não dá
mais" seriam mero reflexo da
proletarização do funcionalismo.
Vamos ao primeiro argumento:
o número de doentes. Se é humanamente impossível atender todos às 8h, por que até hoje se faz
uma pessoa doente acordar no escuro e pegar duas ou três conduções para ser vista pelo médico ao
meio-dia? Como é que algumas
empresas de saúde abarrotadas
de conveniados conseguem atender tanta gente com hora marcada e mandá-los depressa de volta
para a fábrica?
Já pensaram no futuro que um
médico teria se adotasse esse sistema em seu consultório particular
e pedisse que dez doentes chegassem às 14h?
Não é possível que não exista
jeito de organizar melhor o horário de atendimento nos postos públicos. Um pouco que seja, pelo
menos: deixar a pessoa esperar no
máximo duas horas em vez de
cinco ou seis, por exemplo.
O segundo argumento apresenta os maus-tratos como inseparáveis dos salários baixos pagos aos
funcionários da área de saúde. De
fato, a categoria ficou gradualmente empobrecida, mas existem
exceções: alguns recebem do Estado muito mais do que alcançariam na iniciativa privada, tendo
de trabalhar o dobro do número
de horas. Outros têm salário de
príncipe pelo pouco, ou nada, que
fazem. Se valesse a desculpa do
salário, pelo menos esses privilegiados deveriam dar exemplo de
dedicação.
Depois, se fosse assim, como explicar os casos dos funcionários
que moram em favela e, no trabalho, tratam dos doentes com dedicação comovente? A atendente de
enfermagem que, abandonada
pelo marido, acorda às 4h para
cozinhar, deixar as crianças na
creche e chegar ao hospital pontualmente às 7h para dar banho
nos doentes, tudo com um sorriso
nos lábios e palavras de conforto?
Se a culpa fosse apenas do salário,
essa minoria de servidores que
dignificam a condição humana
estaria extinta há anos.
Talvez a explicação mais sensata para o tamanho das filas e do
sofrimento humilhante imposto
aos pacientes constrangidos a utilizar o sistema público de saúde
no Brasil seja outra: os responsáveis pela organização do atendimento médico gratuito não dependem dele. As pessoas influentes da sociedade, que poderiam
pressioná-los se quisessem, também não.
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