São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2006 |
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BERNARDO CARVALHO Mães e guerras
NUM pequeno texto publicado
na coletânea "Escritos de Artistas", recém-lançada pela
Zahar, o alemão Joseph Beuys associa a lebre à fertilidade da mulher, ao
nascimento, ao sangue e à terra. Numa entrevista de 1985 ("Ein Gesprräch", Parkett-Verlag), o mesmo
Beuys cita uma frase de Heráclito
("A guerra é a mãe de todas as coisas") para se referir à revolução interior, subjetiva, que produz inquietação e movimento.
Encurralado e à espera de provisões, o comandante propõe uma breve trégua ao inimigo. No caso de as provisões não chegarem na data prevista, compromete-se a entregar a fortaleza aos ingleses. Como garantia, envia o filho único, de 13 anos. As provisões chegam a tempo, mas os ingleses se recusam a cumprir o trato quando o comandante manda um mensageiro trazer o filho de volta. Ameaçam matar o menino se os franceses não se renderem. Não há como capitular sem perder a honra. À noite, a sós com a mulher, em seu quarto, o comandante fraqueja e revela o motivo do seu desespero. A mãe desfalece ao receber a notícia de que a cidadela e a honra do marido dependem da vida do filho único. Segue-se um diálogo entre os dois, sobre o destino do menino. É essa cena, em toda a sua "crueldade brutal", que Auerbach inclui entre as mais impressionantes da história da literatura ocidental. Depois de ouvir o desespero do marido, a mulher toma a palavra e, por ser mãe, reivindica para si o direito natural de julgamento. Por ter quase morrido ao dar à luz, por ter amamentado o menino, por tê-lo amado por 13 anos como ninguém mais o amou, ela se vê no direito de decidir, mais do que o marido, sobre a vida do filho único. E, embora seu desespero seja por natureza ainda maior do que o dele, por amor ao marido ela abdica do filho: "Agora e para sempre eu o abandono nas mãos de Deus e rogo que nunca mais tenha nada a ver comigo, como se eu nunca o tivesse visto. (...) Ainda estamos na idade de ter filhos, se Deus permitir. Mas a tua honra, uma vez perdida, jamais será recuperada". O texto é de uma força extraordinária. Mas, em princípio, não deveria se encaixar na genealogia e no raciocínio teleológico que estruturam o livro de Auerbach, um amplo panorama da literatura ocidental como representação da realidade, desde Homero até o realismo do século 19 e o fluxo de consciência no início do século 20. O texto de La Sale é anacrônico. Em pleno Renascimento, ele ainda se mostra solenemente medieval, embora seja posterior a manifestações mais humanistas e modernas, como a "Divina Comédia" e o "Decameron". Por que Auerbach dedica a um autor praticamente esquecido (apesar de ser considerado o maior prosador francês do século 15) o mesmo espaço e a mesma atenção antes reservados a Homero, a Dante e a Boccaccio? É aí que se revela a sua sensibilidade - e a beleza de um livro como "Mímesis". A teoria está subordinada ao encanto dos textos, por mais que seu objetivo seja estabelecer parâmetros científicos para analisá-los. Auerbach encontra um lugar para esse corpo estranho dentro do seu projeto e lhe dá uma lógica própria nessa genealogia. Atribui ao texto de La Sale uma parte da literatura medieval que o realismo ocidental não pode recalcar nem descartar. Da mesma forma que o próprio Auerbach não pode deixar de se render ao seu "vigor sensorial", apesar do anacronismo e da retórica circunstancial do texto, que contrariam as suas convicções humanistas e teóricas. Porque, antes de sociólogo e historiador, ele é um homem encantado pela literatura. Mesmo quando ela resiste a se reduzir a retrato do seu tempo. Texto Anterior: BBC abre "filial" no Brasil e quer se associar a TVs Próximo Texto: Música 1: Padre admite falsa ameaça a show de Madonna Índice |
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