São Paulo, terça-feira, 12 de setembro de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Mães e guerras

NUM pequeno texto publicado na coletânea "Escritos de Artistas", recém-lançada pela Zahar, o alemão Joseph Beuys associa a lebre à fertilidade da mulher, ao nascimento, ao sangue e à terra. Numa entrevista de 1985 ("Ein Gesprräch", Parkett-Verlag), o mesmo Beuys cita uma frase de Heráclito ("A guerra é a mãe de todas as coisas") para se referir à revolução interior, subjetiva, que produz inquietação e movimento.
A associação inesperada entre guerra e maternidade faz pensar em "Mãe Coragem", de Brecht, mas também num texto pouco conhecido, do século 15, cujo clímax narrativo é reproduzido por Erich Auerbach no monumental "Mímesis" (ed. Perspectiva), uma das obras-primas dos estudos literários do século 20.
"A Consolação da Senhora du Fresne" ("Le Réconfort de Madame du Fresne") foi escrito por Antoine de la Sale, cavaleiro provençal, oficial da corte e tutor de príncipes, no final da vida, aos setenta anos. O livro, uma compilação de citações da Bíblia, de Sêneca, da vida dos santos e de exemplos de mães corajosas, tinha por objetivo consolar uma senhora (mencionada no título) que acabava de perder o primeiro filho. Dentre essas citações exemplares, Auerbach destaca a história da senhora du Chastel, mulher do comandante da cidadela de Brest, sitiada pelos ingleses durante a guerra dos Cem Anos.


Associar maternidade e guerra nos faz pensar em Brecht e no texto de Antoine de la Sale

Encurralado e à espera de provisões, o comandante propõe uma breve trégua ao inimigo. No caso de as provisões não chegarem na data prevista, compromete-se a entregar a fortaleza aos ingleses. Como garantia, envia o filho único, de 13 anos. As provisões chegam a tempo, mas os ingleses se recusam a cumprir o trato quando o comandante manda um mensageiro trazer o filho de volta. Ameaçam matar o menino se os franceses não se renderem.
Não há como capitular sem perder a honra. À noite, a sós com a mulher, em seu quarto, o comandante fraqueja e revela o motivo do seu desespero. A mãe desfalece ao receber a notícia de que a cidadela e a honra do marido dependem da vida do filho único. Segue-se um diálogo entre os dois, sobre o destino do menino. É essa cena, em toda a sua "crueldade brutal", que Auerbach inclui entre as mais impressionantes da história da literatura ocidental.
Depois de ouvir o desespero do marido, a mulher toma a palavra e, por ser mãe, reivindica para si o direito natural de julgamento. Por ter quase morrido ao dar à luz, por ter amamentado o menino, por tê-lo amado por 13 anos como ninguém mais o amou, ela se vê no direito de decidir, mais do que o marido, sobre a vida do filho único. E, embora seu desespero seja por natureza ainda maior do que o dele, por amor ao marido ela abdica do filho: "Agora e para sempre eu o abandono nas mãos de Deus e rogo que nunca mais tenha nada a ver comigo, como se eu nunca o tivesse visto. (...) Ainda estamos na idade de ter filhos, se Deus permitir. Mas a tua honra, uma vez perdida, jamais será recuperada".
O texto é de uma força extraordinária. Mas, em princípio, não deveria se encaixar na genealogia e no raciocínio teleológico que estruturam o livro de Auerbach, um amplo panorama da literatura ocidental como representação da realidade, desde Homero até o realismo do século 19 e o fluxo de consciência no início do século 20. O texto de La Sale é anacrônico. Em pleno Renascimento, ele ainda se mostra solenemente medieval, embora seja posterior a manifestações mais humanistas e modernas, como a "Divina Comédia" e o "Decameron".
Por que Auerbach dedica a um autor praticamente esquecido (apesar de ser considerado o maior prosador francês do século 15) o mesmo espaço e a mesma atenção antes reservados a Homero, a Dante e a Boccaccio? É aí que se revela a sua sensibilidade - e a beleza de um livro como "Mímesis". A teoria está subordinada ao encanto dos textos, por mais que seu objetivo seja estabelecer parâmetros científicos para analisá-los. Auerbach encontra um lugar para esse corpo estranho dentro do seu projeto e lhe dá uma lógica própria nessa genealogia. Atribui ao texto de La Sale uma parte da literatura medieval que o realismo ocidental não pode recalcar nem descartar. Da mesma forma que o próprio Auerbach não pode deixar de se render ao seu "vigor sensorial", apesar do anacronismo e da retórica circunstancial do texto, que contrariam as suas convicções humanistas e teóricas. Porque, antes de sociólogo e historiador, ele é um homem encantado pela literatura. Mesmo quando ela resiste a se reduzir a retrato do seu tempo.


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