São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 2008

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crítica

É um "filme de arte" sem vôo autônomo

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Fernando Meirelles esquivou-se bem da armadilha maior que a indústria do audiovisual lhe propunha: tornar-se, na ordem global, o cineasta da miséria, dos miseráveis e de suas causas. A isca fora lançada com "O Jardineiro Fiel". O diretor preferiu ir a José Saramago e a "Ensaio sobre a Cegueira", o que lhe garantiu, em termos de produção, o prestígio de um Prêmio Nobel e a identidade com a língua portuguesa (vale lembrar que Meirelles lançou-se à carreira internacional de diretor sem nunca romper laços com o Brasil -sua O2 produz vários filmes). "Ensaio sobre a Cegueira" era, no entanto, desde o início, uma tacada de risco. Em primeiro lugar, por se tratar de um texto literário com muito prestígio (talvez excessivo). Trabalho nessas condições exige fidelidade ao original e busca de imagens concretas para representar idéias abstratas como as do livro. Na história, as pessoas tornam-se cegas, sem razão perceptível. Deixam de ver. As vítimas da epidemia são confinadas em condições desumanas.

Caráter abstrato
O espectador deve refletir sobre um mundo em que guerras parecem nunca terminar ou em que a convivência foi substituída pela competição. Ou seja, idéias com que é fácil concordar, em parte porque são genéricas, mas que, por isso mesmo, não questionam grande coisa. O que constituía um real desafio na feitura do filme era o caráter abstrato disso. O cinema não se dá bem com abstrações. Transformá-las em carne e osso, respiração, objetos, era o desafio e tanto que Meirelles topou encarar. No resultado, não faltam elementos dignos: atores bem dirigidos, cuidado da produção, equilíbrio entre narração subjetiva e objetiva etc. As deficiências do filme devem-se menos a Meirelles do que a seu ponto de partida. Poderia ter sido diferente? Tendo a pensar que, com menor reverência ao texto original e maior audácia em relação ao seu meio de expressão, Meirelles teria podido ir mais longe. Temos aqui, afinal, um filme sobre a cegueira. No entanto, não se percebe nenhuma reflexão específica sobre o tema. É uma pena, porque ajudaria a tirar "Ensaio" da incômoda posição de adaptação literária de prestígio e dar-lhe um vôo autônomo e mais interessante. Como ficou, "Ensaio" resulta num filme aplicado, digno, não destituído de talento. Mas, ainda assim, não mais que um "filme de arte". E essa é a outra armadilha de que vale a pena um cineasta escapar.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Produção: Brasil/Canadá/Japão, 2008
Direção: Fernando Meirelles
Quando: estréia hoje nos cines Bristol, TAM e circuito
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 14 anos
Avaliação: regular



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