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crítica
É um "filme de arte" sem vôo autônomo
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Fernando Meirelles
esquivou-se bem
da armadilha
maior que a indústria do
audiovisual lhe propunha:
tornar-se, na ordem global, o cineasta da miséria,
dos miseráveis e de suas
causas. A isca fora lançada
com "O Jardineiro Fiel".
O diretor preferiu ir a
José Saramago e a "Ensaio
sobre a Cegueira", o que
lhe garantiu, em termos de
produção, o prestígio de
um Prêmio Nobel e a identidade com a língua portuguesa (vale lembrar que
Meirelles lançou-se à carreira internacional de diretor sem nunca romper
laços com o Brasil -sua
O2 produz vários filmes).
"Ensaio sobre a Cegueira" era, no entanto, desde
o início, uma tacada de risco. Em primeiro lugar, por
se tratar de um texto literário com muito prestígio
(talvez excessivo). Trabalho nessas condições exige
fidelidade ao original e
busca de imagens concretas para representar idéias
abstratas como as do livro.
Na história, as pessoas
tornam-se cegas, sem razão perceptível. Deixam
de ver. As vítimas da epidemia são confinadas em
condições desumanas.
Caráter abstrato
O espectador deve refletir sobre um mundo em
que guerras parecem nunca terminar ou em que a
convivência foi substituída pela competição. Ou seja, idéias com que é fácil
concordar, em parte porque são genéricas, mas
que, por isso mesmo, não
questionam grande coisa.
O que constituía um real
desafio na feitura do filme
era o caráter abstrato disso. O cinema não se dá
bem com abstrações.
Transformá-las em carne
e osso, respiração, objetos,
era o desafio e tanto que
Meirelles topou encarar.
No resultado, não faltam elementos dignos:
atores bem dirigidos, cuidado da produção, equilíbrio entre narração subjetiva e objetiva etc. As deficiências do filme devem-se menos a Meirelles do
que a seu ponto de partida.
Poderia ter sido diferente? Tendo a pensar que,
com menor reverência ao
texto original e maior audácia em relação ao seu
meio de expressão, Meirelles teria podido ir mais
longe. Temos aqui, afinal,
um filme sobre a cegueira.
No entanto, não se percebe nenhuma reflexão específica sobre o tema. É
uma pena, porque ajudaria a tirar "Ensaio" da incômoda posição de adaptação literária de prestígio
e dar-lhe um vôo autônomo e mais interessante.
Como ficou, "Ensaio"
resulta num filme aplicado, digno, não destituído
de talento. Mas, ainda assim, não mais que um "filme de arte". E essa é a outra armadilha de que vale a
pena um cineasta escapar.
ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA
Produção: Brasil/Canadá/Japão, 2008
Direção: Fernando Meirelles
Quando: estréia hoje nos cines
Bristol, TAM e circuito
Classificação indicativa: não
recomendado para menores de
14 anos
Avaliação: regular
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