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'O Oitavo Dia' relativiza normalidade
AUGUSTO MASSI
especial para a Folha
Harry (Daniel Auteuil) é o protótipo do homem moderno, perfeitamente integrado ao crescente
processo de competição.
A otimização do tempo por meio
dos avanços tecnológicos ainda
convive com o stress dos engarrafamentos e das filas. A função de
Harry é justamente azeitar as engrenagens capitalistas, formando
quadros profissionais habilitados
e traçando estratégias de mercado.
Mas seus quatro mandamentos
da relação com o cliente não produzem os mesmos resultados na
vida em família. Ao voltar para casa, Harry descobre que foi abandonado pela mulher, Julie
(Miou-Miou), que também levou
as duas filhas.
Georges (Pascal Duquenne) está
no outro extremo, pertence à categoria dos excluídos: é portador da
Síndrome de Down. Após a morte
da mãe -sempre evocada pela
canção de Luís Mariano como "a
mais bela do mundo"-, tenta escapar da rotina opressiva da instituição para deficientes mentais.
Segundo o diretor Jaco Van Dormael, o filme trata da "colisão entre a razão e a loucura". Motivado
literalmente por uma colisão é que
o destino de Harry -dirigindo de
olhos fechados e à beira do desespero- cruza numa estrada com
Georges, fugindo da instituição.
Reaproveitando ironicamente
um dos mandamentos profissionais de Harry, "a diferença choca", o diretor submete o espectador a um longo aprendizado rumo
à amizade. A "excepcionalidade"
de Georges questiona a "normalidade" de Harry. Relativizamos a
noção de deficiência.
Cinematograficamente, é uma
obra que subverte os ângulos tradicionais e adota uma linguagem
mais experimental. Um bom
exemplo é a forma estilizada com
que opera movimentos de verticalidade, alternando sempre a posição da câmara, ora em queda aberta, ora alçando vôo.
A verdadeira poesia do filme reside nessa verticalidade que contesta a lógica horizontal do nosso
olhar: a cena de abertura, o vôo de
Georges dentro do quarto de hotel,
a queima de fogos na praia e o desfecho no topo do edifício.
Mas o enredo não está à altura da
inventividade visual. Muitas vezes,
relevamos o maniqueísmo de certos argumentos que, mesmo camuflados numa roupagem humanista, acabam receitando a doença
como um bom remédio.
Outro reparo: em determinadas
passagens, a originalidade sucumbe à condição de remake de "Rain
Man", "Forrest Gump" e "Um
Estranho no Ninho", para não falar das incursões pelo pós-modernismo de Almodóvar.
Porém nenhuma dessas ressalvas apaga o brilho do filme, que
conta com notáveis interpretações
de Daniel Auteuil e Pascal Duquenne, ambos agraciados com a
Palma de Ouro em Cannes.
Deus criou o mundo em seis dias
e folgou no sétimo. Essa falta custou aos homens séculos de trabalho. Por isso, o oitavo dia é uma
antiga reivindicação da raça humana. Daria até para pegar um cinema.
Filme: O Oitavo Dia
Produção: França, 1995
Direção: Jaco Van Dormael
Com: Daniel Auteuil, Pascal Duquenne
Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1 e
no Estação Lumière 1
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