São Paulo, sexta, 12 de setembro de 1997.



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'O Oitavo Dia' relativiza normalidade

AUGUSTO MASSI
especial para a Folha

Harry (Daniel Auteuil) é o protótipo do homem moderno, perfeitamente integrado ao crescente processo de competição.
A otimização do tempo por meio dos avanços tecnológicos ainda convive com o stress dos engarrafamentos e das filas. A função de Harry é justamente azeitar as engrenagens capitalistas, formando quadros profissionais habilitados e traçando estratégias de mercado.
Mas seus quatro mandamentos da relação com o cliente não produzem os mesmos resultados na vida em família. Ao voltar para casa, Harry descobre que foi abandonado pela mulher, Julie (Miou-Miou), que também levou as duas filhas.
Georges (Pascal Duquenne) está no outro extremo, pertence à categoria dos excluídos: é portador da Síndrome de Down. Após a morte da mãe -sempre evocada pela canção de Luís Mariano como "a mais bela do mundo"-, tenta escapar da rotina opressiva da instituição para deficientes mentais.
Segundo o diretor Jaco Van Dormael, o filme trata da "colisão entre a razão e a loucura". Motivado literalmente por uma colisão é que o destino de Harry -dirigindo de olhos fechados e à beira do desespero- cruza numa estrada com Georges, fugindo da instituição.
Reaproveitando ironicamente um dos mandamentos profissionais de Harry, "a diferença choca", o diretor submete o espectador a um longo aprendizado rumo à amizade. A "excepcionalidade" de Georges questiona a "normalidade" de Harry. Relativizamos a noção de deficiência.
Cinematograficamente, é uma obra que subverte os ângulos tradicionais e adota uma linguagem mais experimental. Um bom exemplo é a forma estilizada com que opera movimentos de verticalidade, alternando sempre a posição da câmara, ora em queda aberta, ora alçando vôo.
A verdadeira poesia do filme reside nessa verticalidade que contesta a lógica horizontal do nosso olhar: a cena de abertura, o vôo de Georges dentro do quarto de hotel, a queima de fogos na praia e o desfecho no topo do edifício.
Mas o enredo não está à altura da inventividade visual. Muitas vezes, relevamos o maniqueísmo de certos argumentos que, mesmo camuflados numa roupagem humanista, acabam receitando a doença como um bom remédio.
Outro reparo: em determinadas passagens, a originalidade sucumbe à condição de remake de "Rain Man", "Forrest Gump" e "Um Estranho no Ninho", para não falar das incursões pelo pós-modernismo de Almodóvar.
Porém nenhuma dessas ressalvas apaga o brilho do filme, que conta com notáveis interpretações de Daniel Auteuil e Pascal Duquenne, ambos agraciados com a Palma de Ouro em Cannes.
Deus criou o mundo em seis dias e folgou no sétimo. Essa falta custou aos homens séculos de trabalho. Por isso, o oitavo dia é uma antiga reivindicação da raça humana. Daria até para pegar um cinema.

Filme: O Oitavo Dia Produção: França, 1995 Direção: Jaco Van Dormael Com: Daniel Auteuil, Pascal Duquenne Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1 e no Estação Lumière 1


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