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Vida surpreende em 'Um Instante de Inocência'
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
É um costume dos filmes de
Mohsen Makhmalbaf: a história
que se conta é a da gênese de uma
história. Era assim em "Salve o Cinema" e "Gabbeh", seus dois outros filmes exibidos comercialmente no Brasil. É assim em "Um
Instante de Inocência".
Aqui, um ex-policial encontra o
cineasta para cobrar a promessa de
usá-lo como ator. O policial havia,
20 anos antes, sido apunhalado
por Makhmalbaf -então um ativista político que lutava contra o
regime do xá. O policial, mesmo
ferido, conseguiu atirar em Makhmalbaf, que terminou preso.
Agora, o que existe não é um
acerto de contas entre dois homens, mas entre dois momentos: o
regime do xá e o dos aiatolás, o
passado e o presente.
Assim, "Um Instante de Inocência" busca resgatar, ao mesmo
tempo, uma história pessoal e uma
história nacional -ambas perdidas na insânia que, acredita Makhmalbaf, comporta as rupturas revolucionárias e as sandices juvenis. Essa justaposição dá conta da
modernidade do cinema iraniano
-talvez o único que mereça hoje
ser chamado de contemporâneo.
Não deixa de ser surpreendente
-ainda hoje- que um dos regimes políticos mais retrógrados em
matéria de costumes conviva com
um pensamento cinematográfico
de tal modo sofisticado. É algo ainda por explicar.
De todo modo, a convivência
não é nada pacífica. Há poucos
meses, o recrudescimento da censura era preocupante.
Não que cineastas como Abbas
Kiarostami e Makhmalbaf -os
dois nomes internacionalmente
mais conhecidos- sejam exemplos de subversão.
Mas ambos puxam a corda, suscitam tensões (o que é agravado
pelo fato de serem populares em
seu país). E a tensão, em "Um Instante...", fixa-se na oposição entre
a flor que o policial pretende oferecer a uma moça e a faca que o jovem Mohsen aponta para ele. É o
ponto central da narrativa.
Não que a flor levada pelo policial signifique a razão amorosa do
regime do xá, e a faca, ao contrário, represente o terror xiita. Não é
simples assim: são atitudes complementares, ambas inocentes.
O que realmente assustará os
censores -e qualquer espectador- é a percepção de que, como
o real e a ficção se fundem ao longo
do filme, o que entendemos como
realidade é um dado ficcional.
Ora, em dado momento, o reencontro entre policial e cineasta,
amplamente planejado, sai dos eixos. A ficção escapa ao controle de
ambos, já que, ao reconstituírem
uma cena política de seu passado,
descobrem que existiu, ao mesmo
tempo, uma cena amorosa.
É então, quando a ficção se torna
independente dos autores/atores,
que o mundo se torna novamente
imprevisto, e a vida se abre como
território da surpresa.
Enfim, é quando a vida se torna
vida e se mostra maior do que
qualquer tipo de realidade anterior. Nesse sentido, "Um Instante
de Inocência" tem muito a dizer,
tanto aos governantes do Irã como
a cada espectador em particular.
Filme: Um Instante de Inocência
Produção: Irã, 1996
Direção: Mohsen Makhmalbaf
Com: Mirhadi Tayebi, Ali Bakhshi
Quando: a partir de hoje, no Espaço
Unibanco - sala 3
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