São Paulo, Terça-feira, 12 de Outubro de 1999
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ARNALDO JABOR

"Mauá" é uma viagem ao nosso presente

O filme "Mauá, o Imperador e o Rei", de Sergio Rezende, é uma viagem ao Brasil de hoje, apesar de se passar no século 19. A história desse homem visionário que, em 1865, tinha 17 empresas em seis países, que era sócio de banqueiros ingleses, de nobres franceses e capitalistas americanos mostra como é antiga nossa terrível vocação para o atraso.
Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, foi um herói esquecido pelo Brasil. Se perguntarem nos colégios quem foi ele, poucos estudantes saberão. Nossos heróis cultuados são sempre os fracassados, os mártires, os enforcados, os esquartejados, as intentonas que não deram certo, as revoluções que pararam no meio, como Tiradentes, frei Caneca ou, então, os matadores de índios, como os bandeirantes paulistas ou traficantes de escravos, como tantos avós de famílias cariocas hoje nas colunas sociais. José Bonifácio, Joaquim Nabuco ou Irineu têm um papel esbatido, secundário, em nosso panteão histórico que celebra orgulhosamente nossas derrotas, tão ao gosto português. Ao contrário, os heróis norte-americanos são vitoriosos, como os "founding fathers", ou laboriosos, como Paul Revere, o ourives que cavalgou 24 horas para avisar os soldados do avanço de tropas inglesas na Guerra da Independência. O entreposto burocrático-colonial que sempre fomos nunca estimulou independência ou originalidade. Era necessário o fracasso dos livres para coonestar a morna supremacia do Estado patrimonialista.
Mauá pagou caro por ter feito estradas de ferro, estaleiros, trazido luz para o Rio e por ter uma fortuna que só era comparável ao orçamento do império de Pedro 2º. Mauá sempre foi uma espécie de desaforo para o mundo escravista, para os latifundiários e mercantilistas que viviam agarrados aos favores do imperador. A idéia de "trabalho" era (e ainda é) vista como uma ocupação vil, apropriada para negros. Como dizia o visconde de Cairu, autor de um livro de economia, o "trabalho é um mero exercício do corpo". Se o senhor de escravos louvasse o trabalho, estaria valorizando o negro. Daí a necessidade de enobrecer somente as atividades abstratas, o "futuro", os valores "espirituais", o "talento", em suma, o oposto de tudo o que os anglo-saxões apreciam, como o "presente", a iniciativa, o lucro, a coragem. Por isso eles estão chegando a Júpiter, e nós continuamos mergulhados na miséria e na estupidez. O próprio Pedro 2º tinha inveja e ciúme de seu barão.
Defrontado com alguma necessidade comercial, o imperador reagia: "Primeiro, temos de mudar os espíritos!". Dizem que foi Pedro 2º quem criou o maldoso trocadilho contra Irineu: "Algum mal... há!", estribilho de fisiológicos e escravistas da época, roubando nas secretarias ou desembarcando negros, com navios camuflados "para inglês ver" (origem da expressão).
O filme de Sergio Rezende é uma viagem ao presente. Vendo-o, lembramos de Brasília, com seus políticos do século 17, com suas invisíveis, mas presentes cabeleiras empoadas, suas bragas, seus borzeguins, sua obtusa teima em manter o país parado.
O Congresso e o Judiciário continuam na colônia; só mudaram a toalete.
Há, em nossa classe dominante, um desejo profundo de perpetuar a miséria. Ela não é um acaso; é um plano, um desejo. Há, em nós, um profundo amor à desigualdade, para valorizar o privilégio. Com democracia, o luxo fica pouco visível; temos horror à convivência popular. Vejam as peruas da revista "Caras", vejam que, ali, nas roupas, nas jóias, nos gestos, tudo aspira a ser um Carnaval aristocrático de papel pintado, uma ridícula corte de Luís 15 de chanchada.
Essa sórdida caricatura do que fomos (e do que somos) aparece no filme de Sergio Rezende, produzido por Joaquim Vaz de Carvalho, como também no excelente "Carlota Joaquina". É muito bom ver uma produção nacional cara, mas que justifica seu custo, mostrando um amplo espectro da vida nacional. Com um brilhante trabalho de cenografia e roupas, uma fotografia excelente de Antonio Luis, uma grande mestria de Sergio Rezende, vemos as cenas do Rio imundo do Segundo Império, vemos Liverpool, onde Mauá foi sócio de Rothschild, o banqueiro poderosíssimo que, depois, contando com a traição dos escravistas políticos brasileiros, quebrou o heróico empresário. É emocionante ver o trabalho de atores como Paulo Betti e Malu Mader (excelente como May, a esposa corajosa que segura a onda com o marido até o fim); é bom ver a atuação dos nossos grandes atores clássicos do cinema novo, como Hugo Carvana, Othon Bastos ou Antonio Pitanga (maravilhoso como Valentim, o fiel escravo alforriado).
O filme nos lembra que até hoje o Brasil luta contra Mauá e sua racionalidade. Mauá queria o fim da escravidão e, em vez disso, teve a Guerra do Paraguai. Quebraram seu banco, construíram uma estrada de ferro estatal paralela a sua, compraram juízes para acabar com ele, levaram-no à falência, da qual ele saiu brilhantemente ao fim da vida, como lemos em sua pungente "Exposição aos Credores", livro que deveria ser obrigatório em escolas e na cabeceira da Fiesp, junto à outra grande obra sobre o homem, "Um Empresário do Império", de Jorge Caldeira (Cia. das Letras).
Vendo esse filme, lembrei-me de uma frase de outro raro brasileiro, também pouco lido, Joaquim Nabuco: "Nossa alma tem de educar-se a si própria, em que a grande, a maior de todas as reformas sociais -a reforma de nós mesmos- terá de ser efetuada no meio de amargos sofrimentos e à custa de grandes sacrifícios. (...) Abolir a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão no país. (...) A escravidão permanecerá por muito tempo a característica nacional do Brasil".
Falaram e disseram Nabuco, José Bonifácio, Mauá e, agora, esse filme de Sergio Rezende.


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