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ARNALDO JABOR
"Mauá" é uma viagem ao nosso presente
O filme "Mauá, o Imperador e o
Rei", de Sergio Rezende, é uma
viagem ao Brasil de hoje, apesar
de se passar no século 19. A história desse homem visionário que,
em 1865, tinha 17 empresas em
seis países, que era sócio de banqueiros ingleses, de nobres franceses e capitalistas americanos mostra como é antiga nossa terrível
vocação para o atraso.
Irineu Evangelista de Souza, o
barão de Mauá, foi um herói esquecido pelo Brasil. Se perguntarem nos colégios quem foi ele,
poucos estudantes saberão. Nossos heróis cultuados são sempre os
fracassados, os mártires, os enforcados, os esquartejados, as intentonas que não deram certo, as revoluções que pararam no meio,
como Tiradentes, frei Caneca ou,
então, os matadores de índios, como os bandeirantes paulistas ou
traficantes de escravos, como tantos avós de famílias cariocas hoje
nas colunas sociais. José Bonifácio, Joaquim Nabuco ou Irineu
têm um papel esbatido, secundário, em nosso panteão histórico
que celebra orgulhosamente nossas derrotas, tão ao gosto português. Ao contrário, os heróis norte-americanos são vitoriosos, como os "founding fathers", ou laboriosos, como Paul Revere, o ourives que cavalgou 24 horas para
avisar os soldados do avanço de
tropas inglesas na Guerra da Independência. O entreposto burocrático-colonial que sempre fomos
nunca estimulou independência
ou originalidade. Era necessário o
fracasso dos livres para coonestar
a morna supremacia do Estado
patrimonialista.
Mauá pagou caro por ter feito
estradas de ferro, estaleiros, trazido luz para o Rio e por ter uma
fortuna que só era comparável ao
orçamento do império de Pedro
2º. Mauá sempre foi uma espécie
de desaforo para o mundo escravista, para os latifundiários e
mercantilistas que viviam agarrados aos favores do imperador. A
idéia de "trabalho" era (e ainda é)
vista como uma ocupação vil,
apropriada para negros. Como dizia o visconde de Cairu, autor de
um livro de economia, o "trabalho é um mero exercício do corpo". Se o senhor de escravos louvasse o trabalho, estaria valorizando o negro. Daí a necessidade
de enobrecer somente as atividades abstratas, o "futuro", os valores "espirituais", o "talento", em
suma, o oposto de tudo o que os
anglo-saxões apreciam, como o
"presente", a iniciativa, o lucro, a
coragem. Por isso eles estão chegando a Júpiter, e nós continuamos mergulhados na miséria e na
estupidez. O próprio Pedro 2º tinha inveja e ciúme de seu barão.
Defrontado com alguma necessidade comercial, o imperador
reagia: "Primeiro, temos de mudar os espíritos!". Dizem que foi
Pedro 2º quem criou o maldoso
trocadilho contra Irineu: "Algum
mal... há!", estribilho de fisiológicos e escravistas da época, roubando nas secretarias ou desembarcando negros, com navios camuflados "para inglês ver" (origem da expressão).
O filme de Sergio Rezende é
uma viagem ao presente. Vendo-o, lembramos de Brasília, com
seus políticos do século 17, com
suas invisíveis, mas presentes cabeleiras empoadas, suas bragas,
seus borzeguins, sua obtusa teima
em manter o país parado.
O Congresso e o Judiciário continuam na colônia; só mudaram
a toalete.
Há, em nossa classe dominante,
um desejo profundo de perpetuar
a miséria. Ela não é um acaso; é
um plano, um desejo. Há, em nós,
um profundo amor à desigualdade, para valorizar o privilégio.
Com democracia, o luxo fica pouco visível; temos horror à convivência popular. Vejam as peruas
da revista "Caras", vejam que, ali,
nas roupas, nas jóias, nos gestos,
tudo aspira a ser um Carnaval
aristocrático de papel pintado,
uma ridícula corte de Luís 15 de
chanchada.
Essa sórdida caricatura do que
fomos (e do que somos) aparece
no filme de Sergio Rezende, produzido por Joaquim Vaz de Carvalho, como também no excelente
"Carlota Joaquina". É muito bom
ver uma produção nacional cara,
mas que justifica seu custo, mostrando um amplo espectro da vida nacional. Com um brilhante
trabalho de cenografia e roupas,
uma fotografia excelente de Antonio Luis, uma grande mestria de
Sergio Rezende, vemos as cenas
do Rio imundo do Segundo Império, vemos Liverpool, onde Mauá
foi sócio de Rothschild, o banqueiro poderosíssimo que, depois, contando com a traição dos escravistas políticos brasileiros, quebrou o
heróico empresário. É emocionante ver o trabalho de atores como Paulo Betti e Malu Mader (excelente como May, a esposa corajosa que segura a onda com o marido até o fim); é bom ver a atuação dos nossos grandes atores
clássicos do cinema novo, como
Hugo Carvana, Othon Bastos ou
Antonio Pitanga (maravilhoso
como Valentim, o fiel escravo alforriado).
O filme nos lembra que até hoje
o Brasil luta contra Mauá e sua
racionalidade. Mauá queria o fim
da escravidão e, em vez disso, teve
a Guerra do Paraguai. Quebraram seu banco, construíram uma
estrada de ferro estatal paralela a
sua, compraram juízes para acabar com ele, levaram-no à falência, da qual ele saiu brilhantemente ao fim da vida, como lemos
em sua pungente "Exposição aos
Credores", livro que deveria ser
obrigatório em escolas e na cabeceira da Fiesp, junto à outra grande obra sobre o homem, "Um Empresário do Império", de Jorge
Caldeira (Cia. das Letras).
Vendo esse filme, lembrei-me de
uma frase de outro raro brasileiro, também pouco lido, Joaquim
Nabuco: "Nossa alma tem de educar-se a si própria, em que a grande, a maior de todas as reformas
sociais -a reforma de nós mesmos- terá de ser efetuada no
meio de amargos sofrimentos e à
custa de grandes sacrifícios. (...)
Abolir a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão no país. (...) A escravidão permanecerá por muito tempo a característica nacional do
Brasil".
Falaram e disseram Nabuco, José Bonifácio, Mauá e, agora, esse
filme de Sergio Rezende.
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