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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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MÔNICA BERGAMO

Ana Ottoni/Folha Imagem
Elisete Barbosa, 31, assistiu a um filme no cinema pela primeira vez no último domingo


Um dia no CEU

Inaugurados há menos de três meses, os CEUs (Centros Educacionais Unificados) já viraram o centro da vida social de algumas comunidades da periferia paulistana. A coluna passou o domingo, 5, no CEU Jambeiro, o primeiro a ser aberto, a 35 km do centro. E pode afirmar: o novo point, por onde passam até 5.000 pessoas por fim de semana, é a "orla de Guaianases".
 
O banho nas três piscinas tem hora marcada. O espaço é o mais disputado e funciona em rodízio. A cada duas horas, uma turma de 120 banhistas toma o lugar ao sol da anterior. É preciso se inscrever com até quatro dias de antecedência. Está começando mais um fim de semana num dos CEUs da cidade.
 
Só entra na água quem tem carteirinha, emitida depois de um exame médico feito lá mesmo. Há uma série de regras: nada de protetor solar ou roupas de banho brancas. E, no caso do CEU Jambeiro, biquínis são proibidos. "Fica mais organizado", explica a auxiliar da direção da escola Érica Alves. A piscina fecha na hora do almoço. Só reabre após as 14h.
 
Uma área gramada, à sombra do prédio da creche, faz as vezes de Ibirapuera. Quem não tem vez na piscina se esparrama por ali mesmo. Como não há praças por perto, é o lugar escolhido por casais de namorados, que reclamam de sentar no chão, porque lá não há bancos. Foi ali, no gramado, que floresceu o namoro do almoxarife Edvaldo Dimas, 21, com a estudante Talita Portillo, 14. Passaram lá boa parte dos três meses que estão juntos. "Namorar em casa não tem graça", explica ela.
 
O espaço é o favorito também da auxiliar de limpeza Luciene da Silva, que estava com quatro crianças. Seus netos? "Deus me livre! São meus filhos", responde ela, 38 anos. Os cabelos brancos e o rosto marcado mostram a vida sofrida: ganha "quase R$ 400" por mês para sustentar sete filhos. À noite, faz a oitava série. Levou os filhos ao teatro pela primeira vez lá na escola.
 
O teatro tem 450 lugares e um telão, é onde funciona também o cinema. O apelo não é como o da piscina. Enquanto havia fila para o banho, a platéia de "Quase de Verdade" tinha menos de 20% dos lugares ocupados, mesmo sendo grátis. Durante a peça, alguns adolescentes diziam gracinhas para as atrizes, universitárias de classe média. "Deixa eu ir aí dormir com vocês", gritou um rapaz. "Achamos que seria mais difícil", diz uma delas, Paula Weinfeld, 21, filha do arquiteto Isay Weinfeld.
 
Parte dos 13 mil m2 do terreno do CEU pertencia a uma das principais equipes de futebol de Guaianases, o Botafogo, fundado nos anos 50. O time cedeu a área para a prefeitura em troca de um campo do lado de fora. Sorte dos ambulantes. Aproveitam para vender ali, já que dentro o comércio é proibido.
 
A primeira fase do projeto dos CEUs prevê 21 unidades, todas em áreas pobres. No orçamento de 2004 estão previstos mais 24. Cada um custa R$ 17 milhões. Mas parece que pouco dinheiro foi destinado a lixeiras, artigo raro na escola e reclamação número um dos frequentadores. "Depois a Marta vai chamar a gente de porco", afirma a estudante Vanessa Moura, 13. A assessoria da prefeitura diz que as lixeiras estão em licitação.
 
O nome da prefeita é um dos mais citados, para o bem ou para o mal. "Não vou com a cara dela", diz o comerciante Edson Gomes, durante o jogo do Botafogo. "Não voto no PT, mas agora vou votar na Marta", completa Adonias Azevedo, também torcedor. Há exceções, como o ajudante-geral Jefferson Pires, 20, que joga basquete no CEU aos domingos e não sabe quem é o prefeito de São Paulo. "Tô por fora de política", diz e sorri amarelo.
 
O sol se põe, a piscina fecha. Esquenta o movimento na pista de skate e nas quadras esportivas. O público, a maior parte jovens, quer ver e ser visto. "Aqui elas não vêm para brincar", diz o autônomo Herivelto Rodrigues, 22, com ar malicioso. Não mesmo. "Eles não têm atitude, não sabem chegar", se queixa a estudante Priscila Ferreira, 17.
 
Priscila é uma das que circulam pela "passarela" do CEU. Trata-se do espaço entre dois campos de futebol. Enquanto os rapazes vêem os jogos, as meninas se empinam e passam na frente deles, como modelos num desfile. "É o jogo da sedução", ensina a atendente Bruna Amanda, 20.
 
Bruna caminhou meia hora de sua casa, em outra região de Guaianases, até a pista de skate. O objetivo era encontrar o menino -o nome ela não diz- com quem tinha ficado nas duas semanas anteriores, mas não deu certo. Tudo bem. "Domingo que vem tento de novo."


@ - bergamo@folhasp.com.br

SÉRGIO DÁVILA (interino)
COM CLEO GUIMARÃES E ALVARO LEME


DEBUTANTE

Doméstica vê "Domésticas"

A diarista Elisete Barbosa, 31, fez sua estréia no cinema no dia 5, no CEU. Como espectadora. Nunca tinha visto um filme na telona. "Tive uma vida difícil."
E ainda tem: ganha R$ 35 por dia de trabalho. Tem seis patroas, todas em bairros distantes de Guaianases. São duas conduções e duas horas de viagem. Viúva há 11 meses, cuida sozinha de três filhos e cursa o supletivo do ensino médio.
Elisete se identificou com as personagens do filme que viu: "Domésticas", de Fernando Meirelles. Só discordou de uma coisa. "Elas criticam demais as patroas." Gostou da tela grande. "Achei da hora."

NA PONTA DA LÍNGUA

Modinhas e boboguetes em paz

Gangueiros, modinhas e boboguetes convivem em harmonia no CEU. Bobo... o quê? Boboguetes, equivalente local para "mauricinho" e "patricinha". Como a vendedora Juliana dos Santos, 18, barriguinha de fora, cabelo preso, batom coral e sobrancelha feita. "Somos 100% femininas", explica ela.
 
Juliana não tem problema em andar com amigas de outras tribos. A estudante Clisley Sodré, 15, é uma. Ela se define como gangueira porque gosta de rap, rock e reggae. Um de seus ídolos é a "rapeira" Negra Li. Entre as boboguetes, o ícone é a apresentadora de TV Márcia Goldschmidt. "Ela é linda e grossa", diz a estudante Priscila Ferreira, 17.
 
E os modinhas? Segundo a gangueira Clisley, "é quem segue um estilo de vestir e nem sabe a filosofia daquele estilo. Tipo ramelão, sabe?". Como? "Ramelão. É quem só dá mancada. Um pipoca." Pipoca? Ah, claro.



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