São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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CINEMA

Crítica/"Crônica de uma Fuga"

Filme vê guerrilha de forma ambígua

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

É curioso que, num momento em que ex-montoneros estejam à frente do governo da Argentina, surja um filme que lança um olhar crítico com relação às atividades guerrilheiras durante a ditadura militar naquele país (1976-1983).
Obviamente, "Crônica de uma Fuga", de Adrián Caetano, não faz a defesa do regime, e expõe, com cores e intensidade artísticas, todo o horror do sistema de repressão responsável pelo desaparecimento de 30 mil pessoas, de acordo com entidades de direitos humanos.
Entretanto, o diretor uruguaio, ao retratar a maneira como os prisioneiros se relacionavam no cativeiro da Mansión Seré, recriado a partir do livro do ex-prisioneiro Claudio Tamburrini (hoje professor de filosofia da Universidade de Estocolmo), não deixa de ressaltar que aquele era um ambiente de intriga, delação, traição e disputas de poder por parte dos guerrilheiros, e não um celeiro de candidatos a mártires.
Nesse microuniverso, Tamburrini, que é inocente e foi preso por engano, surge como o mais lúcido do grupo e, por conta disso, apavorado com o delírio ideológico que havia tomado conta dos colegas. Esse olhar ambíguo é um dos trunfos do filme de Caetano.
Outro ponto caro ao diretor é a fixação em mostrar a deterioração -carnal e espiritual- a que chegam homens submetidos a tal grau de sofrimento.
Os quatro protagonistas se transformam de rapazes vigorosos em figuras encolhidas e semi-humanas. Vítimas de humilhação psicológica e surras duríssimas, passam a maior parte do tempo agachados, rastejando ou simplesmente colados ao chão, muitas vezes nus e em carne viva. As imagens são quase bíblicas, mas sem que se dê aos personagens um ar de santidade. Os olhares revelam uma confusão de sentimentos que vai da desolação ao ódio.
"Estamos desaparecendo", diz um deles. A frase é literal -no sentido de que são homens se esfacelando- e dúbia do ponto de vista político -"desaparecidos", afinal, são os apagados pelo regime sem que vestígios sejam encontrados.
A câmera, solta na mão do cineasta, assume papel participativo, pois parece ser conduzida pelo olhar de um outro prisioneiro, fisicamente na cena.
Caetano abusa de tomadas feitas a partir do chão, pois é em colchões ou estrados muito baixos que a "ação" acaba por se passar a maior parte do tempo.
A Argentina já fez muitos filmes sobre a ditadura. Mas "Crônica" inscreve-se entre aqueles que realmente trazem novos elementos à discussão do tema. Foi assim com "A História Oficial" (Luis Puenzo, 1985), em que uma professora se dá conta de que pessoas desapareceram durante o regime e que sua filha adotiva pode ter sido roubada dos verdadeiros pais; e com "Garage Olimpo" (Marco Bechis, 1999), outro que enfocava ambigüidades do tema, ao retratar a atração entre um torturador e uma guerrilheira.


CRÔNICA DE UMA FUGA
    
Direção:
Adrián Caetano
Produção: Argentina, 2006
Quando: estréia hoje nos cines Bristol,
Espaço Unibanco e circuito


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