|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA
Crítica/"Crônica de uma Fuga"
Filme vê guerrilha de forma ambígua
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
É curioso que, num momento em que ex-montoneros estejam à frente do governo da Argentina,
surja um filme que lança um
olhar crítico com relação às atividades guerrilheiras durante a
ditadura militar naquele país
(1976-1983).
Obviamente, "Crônica de
uma Fuga", de Adrián Caetano,
não faz a defesa do regime, e expõe, com cores e intensidade
artísticas, todo o horror do sistema de repressão responsável
pelo desaparecimento de 30
mil pessoas, de acordo com entidades de direitos humanos.
Entretanto, o diretor uruguaio, ao retratar a maneira como os prisioneiros se relacionavam no cativeiro da Mansión
Seré, recriado a partir do livro
do ex-prisioneiro Claudio
Tamburrini (hoje professor de
filosofia da Universidade de Estocolmo), não deixa de ressaltar que aquele era um ambiente
de intriga, delação, traição e
disputas de poder por parte dos
guerrilheiros, e não um celeiro
de candidatos a mártires.
Nesse microuniverso, Tamburrini, que é inocente e foi
preso por engano, surge como o
mais lúcido do grupo e, por
conta disso, apavorado com o
delírio ideológico que havia tomado conta dos colegas. Esse
olhar ambíguo é um dos trunfos do filme de Caetano.
Outro ponto caro ao diretor é
a fixação em mostrar a deterioração -carnal e espiritual- a
que chegam homens submetidos a tal grau de sofrimento.
Os quatro protagonistas se
transformam de rapazes vigorosos em figuras encolhidas e
semi-humanas. Vítimas de humilhação psicológica e surras
duríssimas, passam a maior
parte do tempo agachados, rastejando ou simplesmente colados ao chão, muitas vezes nus e em carne viva. As imagens são
quase bíblicas, mas sem que se
dê aos personagens um ar de
santidade. Os olhares revelam
uma confusão de sentimentos
que vai da desolação ao ódio.
"Estamos desaparecendo", diz
um deles. A frase é literal -no
sentido de que são homens se
esfacelando- e dúbia do ponto
de vista político -"desaparecidos", afinal, são os apagados pelo regime sem que vestígios sejam encontrados.
A câmera, solta na mão do cineasta, assume papel participativo, pois parece ser conduzida pelo olhar de um outro prisioneiro, fisicamente na cena.
Caetano abusa de tomadas feitas a partir do chão, pois é em
colchões ou estrados muito
baixos que a "ação" acaba por se
passar a maior parte do tempo.
A Argentina já fez muitos filmes sobre a ditadura. Mas
"Crônica" inscreve-se entre
aqueles que realmente trazem
novos elementos à discussão do
tema. Foi assim com "A História Oficial" (Luis Puenzo, 1985),
em que uma professora se dá
conta de que pessoas desapareceram durante o regime e que
sua filha adotiva pode ter sido
roubada dos verdadeiros pais; e
com "Garage Olimpo" (Marco
Bechis, 1999), outro que enfocava ambigüidades do tema, ao
retratar a atração entre um torturador e uma guerrilheira.
CRÔNICA DE UMA FUGA
Direção: Adrián Caetano
Produção: Argentina, 2006
Quando: estréia hoje nos cines Bristol,
Espaço Unibanco e circuito
Texto Anterior: Música: Mariana Aydar lança seu disco com dois shows Próximo Texto: Repressão move campeã de audiência Índice
|