São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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Crítica/"Pintar ou Fazer Amor"

Franceses buscam perfeição em longa que se inspira em Renoir

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

A alternativa posta entre os dois termos do título de "Pintar ou Fazer Amor" não exclui nem um, nem outro. Pois, no filme dos irmãos franceses Jean-Marie e Arnaud Larrieu, ambos estão sujeitos ao predomínio da natureza. É a natureza o que mais salta aos olhos na história. Primeiro, como espaço livre, onde a beleza não precisa estar codificada para encantar. Depois, como espetáculo das forças, em particular o desejo, que impõe sua lei de atração a seres e corpos. A proeza dos Larrieu é transformar um típico filme francês de costumes, uma crônica leve e gentil, num trabalho em que a física e a metafísica não mais se distinguem, em que transcendência e imanência passeiam de mãos dadas. O ponto de partida é um casal de meia idade (Sabine Azéma e Daniel Auteuil, irresistíveis), que alcançou a estabilidade do relacionamento e vê nisso mais uma ameaça que um ganho. Pintora amadora, em um dia ela pratica seu hobby no campo, quando é abordada por um homem. Ele lhe propõe conhecer uma casa, que a encanta. Logo ela convence o marido a deixarem os confortos urbanos e se instalarem fora da cidade. Com esse tom prosaico o filme avança de surpresa em surpresa. O cicerone é cego e reponde pelo nome Adam. Ele tem uma companheira cujo nome é Eva. Tal referência, em vez de ser mero exibicionismo intelectual, é de fato uma escolha "naïf", um modo de reiterar uma origem, que vai dominar os qüiproquós sexuais nos quais o casal urbano se envolverá na segunda parte do filme. É como se o casal Azéma/Auteuil encontrasse neles um paradigma, nesse primeiro amor de todos representados pelo par Adão e Eva, antes que o pecado e o castigo divino caíssem sobre suas cabeças. Pintar é aproximar-se da natureza, buscar nela algum segredo, mas, sobretudo, comungar sua beleza. Fazer amor é uma maneira ainda mais completa de se devolver à natureza, deixar que ela imponha sua necessidade e seus ritmos. O filme parte dessas duas formas de reencontro para alcançar de forma indireta aquilo que está no seu centro: a natureza como epifania. Mas como representar essa experiência mágica no cinema, que sempre impõe seus limites realistas, sem precisar recorrer ao artifício e, assim, quebrar o encanto? A inspiração mais direta é Jean Renoir, em especial aquele dos sublimes "Une Partie de Campagne" e "O Rio Sagrado", onde a natureza não é apenas registrada pela câmera, ela impregna a imagem graças a um trabalho atencioso dado à luz. E ela é um dos segredos "renoirianos" cuja lição os Larrieu reproduzem com perfeição em "Pintar ou Fazer Amor". A predominância da luz natural nas cenas, capturada em sua atmosfera aérea, sem efeitos fotográficos, torna ainda mais impressionante seu esforço de buscar instantes perfeitos, sobretudo quando eles registram a luminosidade do crepúsculo, aquele momento em que luz e sombra se conciliam da mesma maneira que dois corpos na união sexual. Abrindo-se, pela luz, à impregnação do todo da natureza, o cinema dos Larrieu ultrapassa o hedonismo para se lançar no mistério cósmico.


PINTAR OU FAZER AMOR
    
Direção:
Arnaud e Jean-Marie Larrieu
Produção: França, 2005
Com: Sabine Azéma, Daniel Auteuil
Quando: a partir de hoje no Reserva Cultural e circuito


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