São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006

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NINA HORTA
Dando nome aos bois



Quem mexe muito com cozinha entende o martírio que é saber o nome certo das coisas

NÃO SE enganem, é só um descanso. Mesmo que não estejam muito interessados em ingredientes "tradicionais", tenho que voltar a falar no assunto sempre. Afinal, não é um modismo, e sim uma necessidade.
Sou tão urbana quanto todo o resto, tão longe do campo como a maioria esmagadora. Quem me vê escrevendo sobre a ligação que é preciso ter com o que comemos até pensa... Fico me imaginando num banquinho ordenhando uma vaca, aquela coisa enorme, suada (a vaca), e já começo a respirar pela boca, um bicho que vem se afastando de mim há gerações, os mosquitos zumbindo em torno, o rabo da bicha batendo de cá para lá, o pêlo grosso, o medo de seu coice, a estranheza...
Recebi um livro, que nem recomendando estou (ainda não testei receitas), sobre o trabalho do príncipe Charles (o da Camilla Bowles): "Duchy Originals Cookbook", de Johnny Acton e Nick Sandler (ed. KC). Além da vida tumultuada com as mulheres, ele se esforça para ser um grande ambientalista e acha que o problema fundamental da cultura do alimento foi este corte histórico do elo entre o consumidor e a terra.
Espera que a indústria alimentícia e a própria técnica avançada faça tudo para consertar essa separação drástica. No fundo, quer fazer com que todos se importem com o que comem e que sejamos capazes de aproveitar o gosto dos alimentos e suas propriedades e reclamar quando isto não acontece. De onde vem esta batata, senhor feirante? Para que serve? Fritura ou cozimento? É nova, velha? (O interessante é que eles sabem. Nós é que não perguntamos nem nos interessamos.)
O príncipe fundou uma companhia que tinha como objetivo promover a qualidade da comida dentro dos princípios da agricultura sustentável. Começou modestamente com um biscoitinho de aveia feito de grão orgânico plantado na fazenda dele. Hoje já foram desenvolvidos mais de 200 produtos, leitõezinhos redondos de pegar no colo, carneiros felpudos, frutas soberbas de estação, mel, perus gorgolejantes.
Outro livro que chegou às minhas mãos é o oposto. Um livrinho de escola de culinária que prima pela singeleza, pela graça e, glória das glórias, traz o nome científico dos ingredientes dos quais trata e o nome em mais de uma dezena de línguas.
Quem mexe muito com cozinha sabe o martírio que é saber o nome certo das coisas. Pois a senhora Shizuko Yasumoto, japonesa radicada no Brasil, professora de cozinha, se preocupou com isso. O mais interessante do livro é essa nomeação, esse batismo inusitado.
Yasumoto tem toda uma cultura alimentar por trás dela e sempre quis levar ao público as hortaliças e plantas silvestres do Brasil. Por enquanto, conseguiu catalogar 40, mas espera que os leitores atentos a ajudem a continuar o trabalho.
Dos livros, é o mais despretensioso. Tem receitas fáceis, ilustrações realistas, como kabocha no harumaki (rolinhos primavera com recheio de abóbora). Preocupa-se muito com a semente da abóbora, com a soja, tem aquela coisa de saúde, o brócolis serve para isto; a alface, para aquilo, mas já mais para o fim do livro se desinteressa um pouco da parte medicinal, como se, de repente, tivesse atacada de preguiça. Mais provável que tenha sido problema de editora, e lá veio o corte.
Mas não importa. É um livro sui generis, refrescante na sua pureza, generoso, simpático, útil, fácil. Ingênuo, no meio desses coffee-table books que se digladiam sobre as mesas para ver qual é mais brilhante e bonito. (Sabem o que é Ninjin no sarada? Salada de cenoura. Gobô no sarada? Salada de bardana.)
Vejo que pode ser comprado na Livraria Fonomag (www.fonomag.com.br). Recebi muitos livros novos, inclusive artigos acadêmicos e revistas, especialmente bons. Ficam para a próxima vez.
ninahorta@uol.com.br


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