São Paulo, quinta-feira, 12 de novembro de 2009

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NINA HORTA

Uma história de duas mulheres


Já imaginou o dinheiro que ganharia se escrevesse sobre todos esses personagens nos visitando


ACHO QUE me lembro de quando comecei a me interessar por Gertrude Stein e Alice B.
Toklas. Até há pouco tempo, eu guardava uma reportagem substanciosa, numa dessas revistas de papel brilhante, americana, com uma ilustração chamativa de duas páginas inteiras. As duas mulheres sentadas num sofá de "chintz" enorme, vestidas com seus hábitos peculiares.
Gertrude de frade e Alice de tailleurzinho comprido. Eram figuras para não se esquecer jamais, e a ilustradora caprichou no bigode de Alice.
A reportagem era interessante e, pela minha estante, vejo que primeiro comprei um livro sobre elas, "Charmed Circle" (círculo encantando, em tradução livre), de James Mellow, que conta a vida das duas companheiras, principalmente quando moravam em Paris. Gertrude mantinha um tipo de salão literário e de artes em geral, com artistas que descobria. Foi a mentora da Geração Perdida, desde Hemingway a Fitzgerald.
Ela e Alice visitaram a Inglaterra quando Bloomsbury estava no auge, conheceram bem Roger Fry, Otolline Morrel, Whitehead, Strachey, Augustus John, e acho que Virginia Woolf fala sobre um jantar com Gertrude Stein em que só Gertrude falava, muito centrada em si. Enfim, se estranharam. O salão de Paris na rue des Fleurs era coalhado não só de quadros, que se dependuravam nas paredes, mas de pintores, que se dependuravam em torno da original Gertrude enquanto a Toklas pensava no chá, nos refrescos e entretinha as mulheres dos visitantes.
Pois a Cosac Naify, depois de ter lançado "Três Vidas" (2008; R$ 49; 248 págs.), de Gertrude Stein, numa edição muito bem cuidada, veio agora com "A Autobiografia de Alice B.
Toklas" (2009; R$ 59; 288 págs.).
Quem escreveu a autobiografia foi Gertrude Stein. Ela vivia dizendo a Alice, já imaginou o dinheiro que ganharia se escrevesse sobre todos esses personagens nos visitando, se fizesse o retrato deles... Você ficaria rica! E até arranjou nomes para o livro, "Minha Vida com as Mulheres dos Gênios que Eu Precisei Divertir" (enquanto isso, Gertrude conversava com os maridos), "Meus 25 anos com Gertrude Stein". Alice não se entusiasmou muito, ocupada que era com a casa. Mas, isso não foi impedimento algum. A própria Gertrude escreveu a autobiografia de Alice. Entenderam? Ela escreveu uma autobiografia da outra. Dizem que seu estilo obedece muito ao estilo de conversa de Alice, cheio de anedotas, situações engraçadas.
Esse não é um livro de cozinha, dirão vocês. Mas, é. As duas se preocupavam muito em receber bem, em comer bem, em viver bem. Na maioria dos livros de Gertrude, vamos encontrar referências a empregadas, louças, mobílias, descrições de casas. A autobiografia é a história das duas mulheres. O livro é escrito sob a perspectiva de Alice (ela era a dos bigodes). Não se fiem em fotos.
Vi um documentário sobre elas e eram bem interessantes. E o retrato da Stein, feito por Picasso, que está no MoMA, mostra um rosto anguloso e perspicaz. Bem esse livro simples retrata um quarto de século do mundo da arte e da literatura parisiense. É uma leitura incrível, boa aproximação à obra de G. Stein, que não é tão fácil de gostar e de entender. É uma rosa, uma rosa, uma rosa.
Depois da autobiografia, estamos prontos para ler "O Livro de Cozinha de Alice B. Toklas" (1996, ed. Companhia das Letras, esgotado).
Esse escrito por ela própria, sobre o mesmo assunto, mas do ponto de vista da pessoa que fazia ou mandava fazer a comida (os retratos das empregadas são antológicos) de uma casa exigente. Que gostava de comer bem, que adivinha a fome dos exilados pobres e dá a visão perfeita desse salão generoso que impactava os visitantes e chegou a influenciar sobremaneira a literatura contemporânea. Com receitas.

ninahorta@uol.com.br


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