São Paulo, segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

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NELSON ASCHER

Um poema enganosamente singelo

Abordei, na coluna da semana passada, meu interesse recente pela poesia romena. Desde então, concluí minha primeira tradução de um poema de seu representante máximo, o escritor oitocentista Mihai Eminescu (1850-1889).
Trata-se de uma cantiga enganosamente simples na qual se entrelaçam descrições de uma paisagem tardo-outonal e a evocação de uma amada distante, seja no espaço, seja no tempo. São seis estrofes de quatro versos cada, rimados aos pares. A última linha de cada quadra se divide em duas metades idênticas, numa expressão reiterada, e a da estrofe inicial é a mesma que a da final.
Quanto a seu tema genérico, este é a saudade, e o modo, arquetipicamente romântico, de expressá-la consiste em justapor o que o sujeito lírico sente à natureza cujo estado, esboçado através de uns poucos traços fáceis de reconhecer, parece refletir ou até encarnar a subjetividade do poeta. O conjunto inteiro se resolve numa grande metáfora ostensivamente sugerida, a saber, a de que, longe da mulher idealizada (e o satirista vienense Karl Kraus indagara certa feita se é a amada que está distante ou é a distância que é amada), a "alma" do autor se encontra tão desolada e vazia quanto, logo antes do inverno, o mundo ao seu redor.
Tudo isso, mesmo nos dias em que Eminescu redigiu o original, já era lugar-comum antigo. Qualquer tradição, por mais de leve que tenha sido tocada pelo Romantismo, oferece incontáveis exemplos bons, medianos ou ruins de poemas similares com outras tantas variações sobre o tema. Uma possível defesa seria argumentar que, no âmbito da literatura nacional relativamente nova que ele estava criando, de um idioma que seu trabalho contribuiu para unificar, fixar e consolidar, talvez não houvesse ainda algo semelhante, e que lhe cabia, portanto, embora repetindo procedimentos meio obsoletos em outras terras, elaborá-lo na sua. Fosse este o caso, "Que Te Detém" seria propriedade exclusiva de seus conterrâneos.
As diversas tradições literárias sofrem de uma espécie de "horror ao vácuo" e instigam seus criadores a lhes preencherem as respectivas lacunas. Daí que os manuais gostem de destacar, digamos, o primeiro romance albanês, a primeira epopéia brasileira, o primeiro drama realista nigeriano, o primeiro poema surrealista indonésio, obras que não deixariam de chamar a atenção além das fronteiras do país onde surgiram, pois permitiriam, contra o pano de fundo de gêneros ou estilos constantes, examinar variáveis locais e históricas.
Mas, se bem que as limitações da tradução auxiliem a eclipsar a constatação, os versos apresentados aqui não requerem tal estratégia apologética e se sustentam por conta própria. Malgrado sua banalidade superficial, as seis estrofes ilustram um tipo de poesia que todos os poetas que valem seu sal sabem que está entre os mais difíceis de realizar com sucesso: uma canção que, singela e equilibrada, oculte sua arte e artifício a ponto de dar ao leitor a impressão de ter brotado espontaneamente do solo idiomático; uma cantiga que, escrita por um poeta culto, seja capaz de se confundir com aquelas legadas pelo folclore ou compostas por um iletrado anônimo.
Os poemas líricos mais perfeitos de Goethe ou Puchkin, de Byron ou Heine têm precisamente essa aura de inevitabilidade, como se tivessem estado prontos desde sempre no alemão, russo, inglês, e os autores nada tivessem feito exceto extraí-los de seu âmago, lapidá-los e poli-los. Quem, recorrendo ao conceito de "poesia da gramática", desenvolveu um método para desvendar esse mistério, demonstrando quanta complexidade se esconde, às vezes, por trás da singeleza foi o grande lingüista russo Roman Jakobson que, aliás, dedicou todo um ensaio a esmiuçar outro poema do romeno.
Mihai Eminescu, chamado freqüentemente de "o último dos românticos", morreu antes de completar quarenta anos e passou o final da vida entrevado na loucura. Sua produção poética, que é quantitativamente pequena, mas variada, dividindo-se quase meio a meio entre a publicada em vida e a póstuma, inclui baladas breves, sonetos e longas epístolas versificadas, bem como seu poema mais famoso, "Luceafãrul" ("O Astro da Tarde"), um conto de fadas de inspiração mítica e caráter sombriamente filosófico.


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