|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Um poema enganosamente singelo
Abordei, na coluna da semana passada, meu interesse recente pela poesia romena.
Desde então, concluí minha primeira tradução de um poema de
seu representante máximo, o escritor oitocentista Mihai Eminescu (1850-1889).
Trata-se de uma cantiga enganosamente simples na qual se entrelaçam descrições de uma paisagem tardo-outonal e a evocação de uma amada distante, seja
no espaço, seja no tempo. São seis
estrofes de quatro versos cada, rimados aos pares. A última linha
de cada quadra se divide em duas
metades idênticas, numa expressão reiterada, e a da estrofe inicial
é a mesma que a da final.
Quanto a seu tema genérico, este é a saudade, e o modo, arquetipicamente romântico, de expressá-la consiste em justapor o que o
sujeito lírico sente à natureza cujo
estado, esboçado através de uns
poucos traços fáceis de reconhecer, parece refletir ou até encarnar a subjetividade do poeta. O
conjunto inteiro se resolve numa
grande metáfora ostensivamente
sugerida, a saber, a de que, longe
da mulher idealizada (e o satirista vienense Karl Kraus indagara
certa feita se é a amada que está
distante ou é a distância que é
amada), a "alma" do autor se encontra tão desolada e vazia quanto, logo antes do inverno, o mundo ao seu redor.
Tudo isso, mesmo nos dias em
que Eminescu redigiu o original,
já era lugar-comum antigo. Qualquer tradição, por mais de leve
que tenha sido tocada pelo Romantismo, oferece incontáveis
exemplos bons, medianos ou
ruins de poemas similares com
outras tantas variações sobre o tema. Uma possível defesa seria argumentar que, no âmbito da literatura nacional relativamente
nova que ele estava criando, de
um idioma que seu trabalho contribuiu para unificar, fixar e consolidar, talvez não houvesse ainda algo semelhante, e que lhe cabia, portanto, embora repetindo
procedimentos meio obsoletos em
outras terras, elaborá-lo na sua.
Fosse este o caso, "Que Te Detém"
seria propriedade exclusiva de
seus conterrâneos.
As diversas tradições literárias
sofrem de uma espécie de "horror
ao vácuo" e instigam seus criadores a lhes preencherem as respectivas lacunas. Daí que os manuais
gostem de destacar, digamos, o
primeiro romance albanês, a primeira epopéia brasileira, o primeiro drama realista nigeriano, o
primeiro poema surrealista indonésio, obras que não deixariam
de chamar a atenção além das
fronteiras do país onde surgiram,
pois permitiriam, contra o pano
de fundo de gêneros ou estilos
constantes, examinar variáveis
locais e históricas.
Mas, se bem que as limitações
da tradução auxiliem a eclipsar a
constatação, os versos apresentados aqui não requerem tal estratégia apologética e se sustentam
por conta própria. Malgrado sua
banalidade superficial, as seis estrofes ilustram um tipo de poesia
que todos os poetas que valem seu
sal sabem que está entre os mais
difíceis de realizar com sucesso:
uma canção que, singela e equilibrada, oculte sua arte e artifício a
ponto de dar ao leitor a impressão
de ter brotado espontaneamente
do solo idiomático; uma cantiga
que, escrita por um poeta culto,
seja capaz de se confundir com
aquelas legadas pelo folclore ou
compostas por um iletrado anônimo.
Os poemas líricos mais perfeitos
de Goethe ou Puchkin, de Byron
ou Heine têm precisamente essa
aura de inevitabilidade, como se
tivessem estado prontos desde
sempre no alemão, russo, inglês, e
os autores nada tivessem feito exceto extraí-los de seu âmago, lapidá-los e poli-los. Quem, recorrendo ao conceito de "poesia da gramática", desenvolveu um método
para desvendar esse mistério, demonstrando quanta complexidade se esconde, às vezes, por trás da
singeleza foi o grande lingüista
russo Roman Jakobson que, aliás,
dedicou todo um ensaio a esmiuçar outro poema do romeno.
Mihai Eminescu, chamado freqüentemente de "o último dos românticos", morreu antes de completar quarenta anos e passou o
final da vida entrevado na loucura. Sua produção poética, que é
quantitativamente pequena, mas
variada, dividindo-se quase meio
a meio entre a publicada em vida
e a póstuma, inclui baladas breves, sonetos e longas epístolas versificadas, bem como seu poema
mais famoso, "Luceafãrul" ("O
Astro da Tarde"), um conto de fadas de inspiração mítica e caráter
sombriamente filosófico.
Texto Anterior: Quadrinhos: Spacca homenageia os pais da aviação Próximo Texto: Que Te Detém? Índice
|