São Paulo, sábado, 13 de janeiro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

A morte do autor

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

No enterro de Álvares de Azevedo (1831-1852), Joaquim Manuel de Macedo leu, à beira do túmulo, um poema de autoria do morto -"Se Eu Morresse Amanhã"-, provocando comoção geral: "Quanta glória pressinto em meu futuro!/ Que aurora de porvir e que manhã!/ Eu perdera chorando essas coroas/ Se eu morresse amanhã!".
O poema não teria o mesmo sentido, o mesmo impacto e a mesma ressonância se o autor de "A Lira dos Vinte Anos" não tivesse de fato morrido aos 20 anos, em decorrência de uma queda de cavalo, interrompendo a promessa do seu talento antes de poder completar e publicar a sua obra (toda póstuma e volumosa para os quatro ou cinco anos em que foi composta, na adolescência), antes de chegar à maturidade.
Quase tudo o que escreveu Álvares de Azevedo fala da morte, como pressentimento ou agouro -de saúde fraca, em geral melancólico, sob a influência intelectual do "mal do século" do romantismo, embora também manifestando algumas vezes, como na peça "Macário", uma autoconsciência sarcástica, sempre achou que morreria cedo. "Entre os cacoetes históricos que organizaram o destino do homem romântico, um dos mais curiosos foi o de morrer na mocidade", escreveu Mário de Andrade em texto incluído agora na fortuna crítica da "Obra Completa", de Álvares de Azevedo, publicado pela Nova Aguilar e que reúne, além dos textos mais conhecidos, poemas inéditos de valor histórico e a correspondência do autor.
O fato é que o poeta paulista, morto no Rio de Janeiro, não viveu o que escreveu -ao contrário de Byron, uma de suas maiores e confessas influências (de par com Musset e Shakespeare, e Hoffmann na prosa de "Noite na Taverna"), cuja poesia exprime as experiências aventureiras e as paixões extraordinárias do autor.
Por razões pessoais (medo de amar, desejo reprimido, segundo Mário de Andrade) cujo interesse seria mais psicanalítico do que literário, por falta de oportunidade e por circunstâncias sociais (o provincianismo insípido e tedioso de São Paulo, onde estuda direito e frequenta os bailes "para dançar com essas bestas minhas patrícias") e pelo pressentimento da brevidade de sua vida deduzida do corpo franzino, toda a intensidade e a rebeldia dos sentidos expressas com exagero e desespero romântico pelo texto de Álvares de Azevedo são, na verdade, idealizações ostensivas.
O poeta é assombrado pelo espectro de D. Juan, mas suas descrições mórbidas de fantasias sexuais são tão literárias e imateriais quanto as de quem só viveu o sexo na imaginação. Além disso, a intensidade que apreende nos livros que admira não corresponde à da realidade de província em que vive. E, como o romantismo pede uma fusão entre vida e obra -a vida a serviço da arte, vivida como arte, e a arte realizada na vida-, a sua só poderá ser resultado de um paradoxo. Sua poesia é sublimação de uma vida ansiada, mas não vivida. Pode ser, ao mesmo tempo, puro desejo e medo da experiência, jamais relato. É a vida no sonho, e o sono no lugar do sexo: "Foram sonhos contudo. A minha vida/ Se esgota em ilusões".
Sua divisa é "morrer de amor", porque só a morte poderá dar vida à sua obra. Ela será a única e, por isso mesmo, tão ansiada experiência do poeta. Pelas circunstâncias de sua vida, só lhe resta a morte para cumprir o preceito romântico de fazer coincidir vida e arte. E, em seu arrebatamento inflamado de adolescente, não pára de repetir que está condenado a encontrar a vida na morte, pela poesia. É o que explica "o cansaço precoce de viver, o desejo anormal do fim", a que se refere Antonio Candido em texto também incluído na fortuna crítica. É a morte que virá por fim coroar com o real essa obra de pura imaginação.
A obra pede a morte do poeta romântico à medida que ele a anuncia: "Sou o sonho de tua esperança/ Tua febre que nunca descansa,/ O delírio que te há de matar!...". É que a obra -não a que seria fruto de uma promessa cuja interrupção todos lamentam, mas a que ele deixou sem publicar, em sua eventual precariedade e imaturidade adolescentes-, por ser romântica e querer coincidir com a vida, neste caso só poderá se realizar, paradoxalmente, pela morte do autor.


Obra Completa
    
Autor: Álvares de Azevedo
Organização: Alexei Bueno
Editora: Nova Aguilar
Quanto: R$ 90 (850 págs.)





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