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FERREIRA GULLAR
Bossa nova em Macondo
Já naquele tempo, em matéria de música popular, as coisas andavam muito rápido
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ANO NOVO, vida nova. Pois é,
mas talvez exatamente por isso a gente começa a lembrar
de coisas velhas e até mesmo velhíssimas, como a indecifrável cena em
que, menininho, estou com meu pai
e minha mãe dentro de um automóvel que enguiçou de noite numa estrada sem luz e sem gente. Sonhei ou
aconteceu? Que eu saiba meu pai
nunca teve carro, mas tio Elpídio tinha. Ou era ele e não meu pai quem
dirigia, um Ford-de-bigode, desses
que só se vêem em filme mudo?
Lembrança bem menos remota
me veio ao ler nos jornais que 2008
assinala os 50 anos do surgimento
da bossa nova. Não que tenha algo a
ver com ela, eu que me meti em tantas coisas, causa atual de alguns tormentos. É que a imprensa tem também mania de lembrar, e para isso
precisa ouvir sobreviventes, um dos
quais sou eu. Na qualidade de "testemunha ocular da história" -para
evocar a expressão do extinto "Repórter Esso"- sou indagado sobre o
golpe de 1964, do CPC da UNE, o
concretismo, o neoconcretismo, o
Grupo Opinião, a passeata dos 100
mil, a morte do pianista Tenório Júnior, em Buenos Aires, a morte de
Allende, em 11 de setembro de 1973,
e até do suicídio de Getúlio Vargas,
em 1954. E o pior é que, neste caso,
eu estava lá, não dentro do Catete,
que não era ninguém para andar em
tão altas rodas: estava do lado de fora, num bar que havia quase em
frente ao palácio, quando o já mencionado "Repórter Esso" informou,
por volta das oito e meia da manhã,
em edição especial, que o presidente
Vargas acabara de se suicidar com
um tiro no peito em seu quarto no
palácio do Catete. A verdade é que
eu morava numa pensão ali perto,
na rua Buarque de Macedo, e mal
pudera dormir com o movimento de
patrulhas do Exército debaixo de
minha janela. Estava ali de ingerido,
minha luta era outra, acabara de publicar um livro totalmente alienado,
em que, como um poeta-bomba, me
implodira junto com a linguagem.
Naquele boteco, todo mundo parecia odiar Vargas, mas, após a notícia
de seu suicídio, alguém gritou: "Mataram o Velhinho!". E a indignação
tomou conta do ambiente como logo tomaria conta da cidade e do país.
Mas voltemos à bossa nova, ou
melhor, ao que a sua evocação me
fez evocar. Não testemunhei o nascimento da bossa nova, nada sabia
de João Gilberto e, quando conheci
Carlinhos Lyra, ele já estava engajado no CPC. Mas vivi, sem o saber, em
1948, em São Luís, a emoção de seu
remoto nascimento, de sua pré-história. Costumo dizer que nasci em
Macondo, porque o modernismo só
chegou a São Luís quase 20 anos
após a Semana de Arte Moderna. Isso, no caso da literatura porque, no
caso da música popular, graças ao
rádio, estávamos em dia com as novidades. Tanto assim que, mal Dick
Farney havia gravado "Copacabana"
e já, lá na rua dos Prazeres, estava eu,
junto com meu irmão Dodô, na casa
de um amigo, ouvindo-o cantar. Alguém já tinha escutado a música na
rádio Timbira e soubera do programa que a emissora transmitiria
aquela tarde, dedicado a Dick Farney. "Copacabana, princesinha do
mar..." A sua voz, seu modo de cantar diferente, sem a retórica e os giros emocionais de Orlando Silva,
deixaram-nos fascinados.
E não é que, meses depois, vou trabalhar como locutor na Timbira?
E não é que, no ano seguinte, em
1949, Dick Farney chega ao Maranhão para apresentar-se no teatro
Artur Azevedo? Para você ver como,
já naquele tempo, em matéria de
música popular, as coisas andavam
rápido. E isso indica também como
o pessoal já estava cansado de tanto
bolero e tanto dó de peito.
Mas o melhor vocês ainda estão
por saber. É que, como a ida de Dick
Farney a São Luís havia sido em parte patrocinada pela rádio Timbira,
foi eu o locutor escolhido para apresentar o seu show, diretamente do
palco do teatro. Essa tarefa deveria
caber a Marcos Vinícius, locutor
muito mais experiente, que adoecera. Assim, vi-me eu, ali, nas coxias do
teatro Artur Azevedo, de paletó e
gravata, sapato engraxado, rosto
empoado e em pânico, para apresentar ao público maranhense o novo ídolo da música popular brasileira. Lembrei-me que Marcos Vinícius, ao narrar um programa sobre a
música paulista, falava da "terra do
café, essa preciosa rubiácea, produto
de São Paulo para o mundo". Resolvi
imitá-lo e, assim, antes de chamar o
cantor ao palco, teci elogios à Cidade
Maravilhosa, berço do samba e das
mulatas sestrosas, ao Pão de Açúcar,
ao Cristo Redentor, até que a platéia,
não sei por que, começou a vaiar e
gritar: "Dick Farney, Dick Farney".
Ele assomou ao palco e as vaias mudaram-se em aplausos. Saí de lá desapontado, sem entender por que os
maranhenses odiavam tanto o Rio.
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