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CONTARDO CALLIGARIS
Por favor, não atirem no pianista
Assisti a "O Pianista" de
Roman Polanski algum
tempo atrás, nos EUA. Planejava
comentar o filme na semana passada, aproveitando sua estréia no
Brasil. Mas, durante o Carnaval
carioca, a violência do Comando
Vermelho pareceu mais relevante.
Hoje, volta a mesma hesitação.
Comentar "O Pianista" ou refletir
sobre a guerra que nos espreita?
Afinal, "O Pianista" é apenas um
filme: um prazer de algumas horas e a ocasião de pensar um pouco. Enquanto a guerra, se acontecer, transformará a cara do mundo a golpes de bisturi ou de martelo.
O engraçado é que essa desproporção é o tema mesmo do filme.
O protagonista, judeu, concertista
na Polônia antes da invasão alemã, vive o martírio do gueto de
Varsóvia. No desamparo de uma
existência de morto vivo, escondido na espera de que a tragédia
acabe, faminto e sozinho, a música é o único conforto.
Num dos momentos mais comovedores, o pianista, obrigado
ao silêncio em seu esconderijo, toca mentalmente, agitando os dedos no vazio, acima das teclas.
Teceremos o elogio da música civilizadora que triunfa contra a
cacofonia da guerra?
Nem o filme nem a realidade
permitem essa consolação. Durante a conquista do Oeste americano, nos bares onde aventureiros, bandidos, jogadores e mulheres da vida afogavam no álcool as
penas do dia, dizem que havia
um cartaz ao lado do piano: "Por
favor, não atirem no pianista".
Ou seja, matem-se com gosto, não
se preocupem se uma dançarina
ou um barman ficam na linha de
tiro, mas poupem o músico. Os
pianistas eram raros e, em Abelene ou Dodge City, com a exceção
da Bíblia, havia poucos livros;
mal deviam chegar os "dime novels", romances de bangue-bangue vendidos por dez centavos.
Tampouco havia museus ou exposições. A música, por mais que
fosse representada por marchinhas de cabaré, era a principal, se
não a única experiência estética.
O vaqueiro bêbado, a prostituta
saudosa da Costa Leste, o assassino sedento de sangue ou cansado
de matar, o jovem decidido a descobrir sua mina de ouro, todos
deviam encontrar, nos acordes estridentes do piano, o prazer do sonho, da nostalgia, do luto, da esperança. Era preciso salvar o pianista.
Do mesmo jeito, no filme de Polanski, a música é a razão de viver
do protagonista, mas é também o
conforto de um oficial alemão no
meio da Varsóvia destruída pela
raiva nazista. Depois da guerra,
Chopin acariciará a alma dos sobreviventes do genocídio e dos poloneses que reinventam a vida
nos escombros. E também consolará as viúvas dos SS.
Essa constatação leva a consequências opostas. Ela afirma a
grandiosa universalidade da experiência estética, apêndice da
universalidade da razão. Ou seja,
a arte confirma que somos todos
humanos: vítimas ou carrascos,
compartilhamos uma sensibilidade que nos faz sonhar, rir e chorar
diante da mesma mágica.
Mas essa universalidade consoladora também nos diz que a arte
é incapaz de lutar contra a feiúra
do mundo. Se Chopin acalenta
tanto o pianista judeu, órfão de
sua família e de sua cidade, como
o nazista que assolou sua vida,
para que serve Chopin?
Os nazistas saquearam os museus da Europa. Muitos se apoderavam de quadros e de estátuas
por seu prazer pessoal. Se Goehring apreciava as mesmas obras
que me comovem, devo supor que
uma obra de arte toca a sensibilidade de todos, mas também constato que há um divórcio entre o
belo e o justo e que o belo sofre de
uma certa inutilidade.
Entende-se por que, sobretudo
desde a Segunda Guerra, a produção artística é atormentada
por uma desconfiança moral. Será que quero produzir uma obra
que pode entusiasmar um canalha? Como pintar, escrever música, poesia ou ficção depois de
Auschwitz?
No fim dos anos 60, numa galeria de Milão, visitei a instalação
de um artista americano, cujo nome esqueci. Cobria o chão uma
camada de terra marcada pela
passagem de um carro blindado.
Uma gravação ensurdecedora enchia os ouvidos: o motor de um
tanque, explosões, gritos. Tudo isso não pareceu suficiente ao artista, que plantou, no meio da instalação, um cartaz explicando que
ele queria criticar a guerra do
Vietnã.
Nos mesmos anos, atrás da cortina de ferro, florescia o realismo
socialista: as artes plásticas propunham ilustrações didáticas para a constituição da sociedade
ideal.
Em ambos os casos, tratava-se
sobretudo de inculcar idéias. Afinal, se Goehring se emocionava
contemplando quadros (de Giotto a Paul Klee), talvez impor um
pensamento fosse mais urgente
do que pintar.
O problema, obviamente, é que
as idéias também fracassaram e
fracassam na tarefa de melhorar
o mundo.
O pianista do filme de Polanski
toca uma sinfonia melancólica,
espécie de réquiem para nossa civilização. Acreditamos na universalidade da razão e constatamos a universalidade de nossas
emoções estéticas: reconhecemos,
portanto, que todos somos parte
da mesma tribo humana. Mas isso não garante nada.
Pensamos segundo lógicas comuns e compartilhamos prazeres
comuns ao escutar Chopin. Mas
nem por isso conseguimos inventar juntos um mundo justo e pacífico.
ccalligari@uol.com.br
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