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Compêndio de maravilhas
Obra de 1.600 páginas reúne dados sobre geografia, povos e lendas amazônicas coletadas no século 18
RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Ao longo dos meses de julho
e agosto de 1927, o escritor
Mário de Andrade (1893-1945)
encetou sua importante expedição à Amazônia, comentando-a
em cartas. Mas devemos ter em
mente que há um pouco de mistificação temperando seus comentários sobre essa região. Se ela, à
exceção de Manaus, ainda tinha
zonas absolutamente desconhecidas e milhares de quilômetros virgens, há que se levar em conta que
já vinha sendo desbravada por
viajantes desde o século 18.
Um desses aventureiros foi o
francês La Condamine, que percorreu a região entre os anos de
1743 e 1744. Repetiu o trajeto de
outros dois, Francisco de Orellana
e Cristolbal de Acuña, descendo
do Peru até Belém do Pará. Relatou tudo em um diário, que obteve ampla repercussão quando publicado, em 1745. Outra iniciativa
dessa envergadura foi protagonizada pelo naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira, em 1783.
Em meio a essas vidas e obras,
se encontra a vida do padre João
Daniel (1722-1776) e seu monumental "Tesouro Descoberto no
Máximo Rio Amazonas", que
acaba de ser publicado na íntegra
pela editora Contraponto, em
parceria com a Prefeitura de Belém, com coordenação de Renata
Gérard Bondin e prefácio elucidativo do historiador Vicente Salles.
Trata-se, sem dúvida, da maior
fonte de informações sobre a
Amazônia de que dispomos.
João Daniel passou 16 anos, de
1741 a 1757, desempenhando atividades religiosas na região e colhendo informações detalhadas
sobre sua geografia, fauna, flora,
povos, costumes, organização,
história e folclore, entre tantos
outros aspectos relativos à vida
dos missionários e às culturas locais. Deposto de seu cargo pela
cruzada contra os jesuítas levada
a cabo pelo Marquês de Pombal,
passou outros 18 anos trabalhando essas informações, nos cárceres de Lisboa, até sua morte.
O fruto desses acidentes de sua
vida é uma obra que não encontra
par em termos de riqueza vocabular, minúcia descritiva e força
imaginativa. Obra essa cujo percurso foi tão ou mais acidentado
que sua vida. A primeira edição
brasileira só vai ocorrer parcialmente, pelas mãos de Verhagen,
no século 19. Depois, no século 20,
são descobertos dois manuscritos: uma segunda versão da Parte
Quinta e a Parte Sexta, e última,
em uma biblioteca de Évora. É baseada em todas essas versões e
correções necessárias que vem a
público a presente edição, a mais
completa até agora.
Os manuscritos de Daniel são
divididos em seis partes, distribuídas meio a meio nos dois volumes e subdivididas em tratados,
de acordo com as suas respectivas
matérias. Pode-se dizer que ele
começa pelas características mais
ligadas à geografia, às plantas, aos
animais, aos minerais e à história
do Amazonas, passa depois à descrição das culturas indígenas e, no
segundo volume, entra em aspectos relativos às missões, à agricultura, ao comércio, à indústria e
aos engenhos, ou seja, aos traços
mais complexos da organização
social como um todo.
Difícil dar um curso a essa prosa
caudalosa e reter o fluxo copioso
de informações desse rio que é a
obra de João Daniel. À guisa de
roteiro, o leitor poderia se concentrar nas partes Primeira e Segunda, do primeiro volume, que
tratam dos índios e da fauna, da
flora e da história amazônicas.
Depois, tomar as trilhas do segundo volume e enveredar pelos seus
confins, na medida em que relatos
e assuntos forem lhe apetecendo.
Traço que não se pode deixar de
mencionar, entretanto, e que já
vale a obra, é a presença das fábulas e do imaginário local, mesclado às mais pias crenças religiosas.
É quando vemos emergir os homens-marinhos, espécies de homens-anfíbios, que vêm à noite
nas redes dos pescadores para assombrá-los com seu canto, as estátuas de pedra de um lago mítico
que petrifica quem nele se atreva
entrar e a descrição da Pedra das
Maravilhas, uma pedra que, como num leque furta-cor ou como
no Aleph de Borges, traz todas as
pedras preciosas dentro de si.
Em nenhum momento o autor
duvida desses seres, quando muito relativiza a possibilidade de sua
existência. Para o cristianismo, o
mundo foi criado pelo Verbo. Para o pároco João Daniel, essa criação ainda não acabou nem nunca
acabará, enquanto nos caiba dar
seqüência a ela e sustentar sua leveza, por meio de nossos atos,
criações e palavras.
Tesouro Descoberto no Máximo
Rio Amazonas Vols. 1 e 2
Autor: padre João Daniel
Editora: Contraponto/Prefeitura de
Belém do Pará
Quanto: R$ 45, cada volume (600 págs. e
640 págs.)
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