São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 2000


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As vaidades do barroco

Divulgação
"Santana Mestra", de autor desconhecido



Colecionador de obras de Aleijadinho e o Mosteiro de São Bento, em São Paulo, dono de um dos mais importantes acervos nacionais de arte sacra, negam obras para Mostra do Redescobrimento: Brasil + 500 por divergências com curadoria


MOSTRA DO REDESCOBRIMENTO
Fogueira de vaidades chamusca "Barroco"

ALVARO MACHADO
especial para a Folha


Visões antagônicas sobre o papel da religião católica no Brasil e uma fogueira de vaidades transformam desde já em campo de batalha o cenário de 6.000 m2 que está sendo finalizado para abrigar "A Imagem Religiosa no Brasil". Também conhecido como "Barroco", o segmento está entre os 12 módulos da Mostra do Redescobrimento: Brasil + 500, que o presidente Fernando Henrique Cardoso inaugura no próximo dia 23, no parque Ibirapuera, em São Paulo.
Em atitude inédita, o Mosteiro de São Bento de São Paulo, proprietário de um dos mais importantes acervos de arte sacra do país, negou-se a emprestar imagens à mostra, pois "consta que a exposição pretende manifestar uma suposta dominação exercida pela igreja sobre o país, insinuando essa dominação como a própria razão de ser da instituição". A negativa foi detalhada em carta à Associação Brasil 500 Anos, baseada em parecer do clérigo beneditino Carlos Eduardo Uchôa, também artista plástico e historiador de arte. "A recusa não se deu por se tratar de imagens de culto, como foi interpretado, uma vez que acabamos de emprestar obras à exposição "Barroco de Paris". O irmão Uchôa não é um amador no assunto, e o mosteiro não quis colaborar com uma visão de dominação associada, sem mais, à missão religiosa", afirma dom Estevão Souza Neto, professor de filosofia da Unicamp.
A curadora do módulo, Myriam Andrade Ribeiro Oliveira, se surpreende: "É o maior samba do crioulo doido que já ouvi, sem pé nem cabeça. Jamais ouvi falar do historiador Carlos Uchôa e nem conheço livros seus publicados. Os beneditinos contam com grandes historiadores de arte, como dom Clemente da Silva Nigra, que foi meu amigo pessoal, dom Mateus, do Rio, e dom Hildebrando, de Pernambuco. Mas desse senhor nunca ouvi falar", diz.
A avaliação dos religiosos parece ater-se mais aos conceitos expressos na cenografia do módulo, encomendada à diretora teatral Bia Lessa, do que às escolhas da curadoria. Porém Myriam se declara em total sintonia com as idéias materializadas por Lessa (leia texto nesta página).
Não foi esse o único problema inesperado enfrentado pelo módulo até agora. Ataque inesperado partiu esta semana de um dos maiores colecionadores de peças de Aleijadinho (1730-1814), o financista paulista Renato Whitaker. Após negar o empréstimo de duas peças de seu acervo à mostra, Whitaker exibe, a partir de amanhã, 24 imagens de Aleijadinho no restaurante de culinária portuguesa Antiquarius, no elitizado bairro paulistano dos Jardins. "Ao menos, o visitante que vier à cidade não se decepcionará com falta de Aleijadinhos", diz o colecionador (Brasil + 500 traz oito peças do escultor mineiro).
Sem campânulas de vidro, a coleção particular foi apresentada anteontem à imprensa paulista num ambiente atravessado de vapores de pratos como o "bacalhau espiritual". Mantendo a segurança em seu nível rotineiro, o local planeja servir em breve prato alusivo a Minas, "talvez uma leitoa barroca". Visitas devem ser feitas apenas no período da tarde, agendadas pelo tel. 0/xx/11/282-3015, até 7 de setembro.
O inusitado evento gastrovisual é, na verdade, retaliação de Whitaker à diretoria da Mostra 500 Anos, a mesma que, na última Bienal Internacional de SP, não teria dado destaque em catálogo para o empréstimo de seis peças do escultor barroco. A Associação Brasil 500 Anos informa que, desta vez, o colecionador não atendeu solicitação de expertise para concretizar o empréstimo de duas obras.
Renato Whitaker discorda, ainda, dos critérios técnicos da curadora: "Um dos Cristos que ela escolheu para a mostra "Barroco em Paris" (1999) era visivelmente de outra autoria". Myriam Andrade, coordenadora de pós-graduação em História da Arte da UFRJ, contra-ataca: "O problema da coleção Whitaker é conter vários itens duvidosos, atribuídos erroneamente a Aleijadinho. No entanto o colecionador pretendia forçar a entrada do maior número possível de peças suas".
"Esse triste episódio determina que eu nunca mais faça "expertises" sem a companhia dos outros quatro membros do Instituto do Patrimônio Nacional (Iphan)", lamenta Andrade. "Ao menos há o consolo de saber que ele (Whitaker) nunca mais vai me telefonar pressionando por autenticações. Foi por isso que resolvi tratar preferencialmente com museus." Contudo, mesmo nesse setor, Myriam administrou negativas: o Museu de Arte Sacra de SP preferiu mandar a Portugal a emblemática "Nossa Senhora das Dores", uma das imagens mais reproduzidas de Aleijadinho.
Também as prefeituras das cidades históricas mineiras, como Congonhas do Campo, não quebraram sua tradição de ciúmes e superstição: as obras de Antônio Francisco Lisboa não arredam pé de sua circunscrição, mesmo com a promessa de verbas para a recuperação de altares e imaginárias em mau estado de conservação.
"Apesar de trabalhar toda a minha vida com elas, nunca imaginei que as imagens sacras possuíssem carga emocional tão grande, a ponto de provocar essas reações absurdas", conclui Myriam Andrade Ribeiro.



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