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Cenário tem
roteiro
conceitual
especial para a Folha
"Isto não é cenário, mas a
própria devoção", arrisca Bia
Lessa para descrever seu trabalho no módulo "A Imagem Religiosa no Brasil". "Contando a
história dessas imagens de características tão originais, recuperamos também a história do
povo brasileiro, que soube
transformar um catolicismo
assustador numa mistura extraordinária de costumes, na
qual Deus e os santos estão a
serviço dos homens, e não o
contrário", acrescenta.
A artista trabalha a partir de
formulações da curadora
Myriam Andrade Ribeiro, segundo a qual a imagem sacra
produzida pelas várias escolas
regionais brasileiras no século
18 reflete elementos raciais e
culturais mestiços, revelando,
pela primeira vez na história do
país, uma arte genuinamente
brasileira.
A um custo aproximado de
R$ 1,1 milhão e até 150 pessoas
trabalhando simultaneamente
em sua montagem, o cenário é
o mais imponente entre os encomendados pela Mostra do
Redescobrimento com a intenção de atrair público até agora
alheio a eventos do gênero.
O item "grandiosidade", no
entanto, é apenas o primeiro
salto ensaiado pelo módulo sob
a responsabilidade da dupla
Lessa/Andrade. As soluções
plásticas encontram-se a serviço de sugestões de ordem conceitual. Na primeira sala, com
troncos de 7,20 m de altura e
cascalho de ferro envolvendo
as luxuosas imagens portuguesas do século 16, procurou-se
um contraste de estranhamento. Ainda nesse ambiente, o público recebe estímulos intelectuais de outra ordem, com poemas de Gregório de Matos, padre Vieira ou Carlos Drummond de Andrade nas vozes de
Maria Bethânia e outros intérpretes.
Os jesuítas são admirados em
sua face "dinâmica", num palco-jangada com cerca de 20
imagens trazidas das missões
jesuíticas guaranis do Sul (pela
primeira vez em São Paulo). Já
a estatuária beneditina fica em
bases suspensas do teto, para
transmitir a impressão de "arte
isolada na clausura, direcionada à sublimação", conforme
Lessa.
A seguir, 200 mil flores de papel crepom roxo e amarelo sobre hastes de ferro formam "tapetes" para introduzir os artistas nascidos já no Brasil do século 18, com exemplos das diversas oficinas leigas de imagens. O simbolismo é anterior à
própria cenarização: as flores
foram confeccionadas no Presídio do Carandiru (SP) pelos
detentos religiosos do Pavilhão
7. Questionada quanto à possível insegurança das hastes de
ferro no percurso labiríntico,
Lessa atirou-se várias vezes sobre as mesmas, para demonstrar que são inofensivas.
O público não precisa chegar
a tais extremos, mas deve imitar uma procissão para entrar
em "Catedral", simulada com
divisórias de madeira de mais
de 15 metros de altura. "O Barroco já é, por si, uma apoteose",
argumenta a cenógrafa.
Em outro trecho, "Buracos
de Fechadura" revela ao espectador "indiscreto" detalhes arquitetônicos de igrejas e silhuetas de santos, à maneira da última obra concebida pelo dadaísta francês Marcel Duchamp. O visitante será convidado, ainda, a deixar pedidos
escritos a seus padroeiros de
devoção num imenso mural.
Por fim, a saída se dá como
na "área de dispersão" de um
desfile de escolas de sambas.
Nesse local, a fé dos séculos
passados é atualizada em vídeos inéditos do cineasta
Eduardo Coutinho, fotos do
célebre "Cristo Embrulhado"
do carnavalesco Joãosinho
Trinta e andores de procissão.
O som é o de um samba-enredo da Mocidade Independente
em forma de oração: "Padre
Miguel olhai por nós / Se liga
que essa gente tão sofrida...etc.". "Nós estamos lidando com esses elementos da forma mais sagrada, pois a alegria
é uma grande redenção", afirma Lessa.
(AM)
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