São Paulo, quinta-feira, 13 de abril de 2000


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Cenário tem roteiro conceitual

especial para a Folha

"Isto não é cenário, mas a própria devoção", arrisca Bia Lessa para descrever seu trabalho no módulo "A Imagem Religiosa no Brasil". "Contando a história dessas imagens de características tão originais, recuperamos também a história do povo brasileiro, que soube transformar um catolicismo assustador numa mistura extraordinária de costumes, na qual Deus e os santos estão a serviço dos homens, e não o contrário", acrescenta.
A artista trabalha a partir de formulações da curadora Myriam Andrade Ribeiro, segundo a qual a imagem sacra produzida pelas várias escolas regionais brasileiras no século 18 reflete elementos raciais e culturais mestiços, revelando, pela primeira vez na história do país, uma arte genuinamente brasileira.
A um custo aproximado de R$ 1,1 milhão e até 150 pessoas trabalhando simultaneamente em sua montagem, o cenário é o mais imponente entre os encomendados pela Mostra do Redescobrimento com a intenção de atrair público até agora alheio a eventos do gênero.
O item "grandiosidade", no entanto, é apenas o primeiro salto ensaiado pelo módulo sob a responsabilidade da dupla Lessa/Andrade. As soluções plásticas encontram-se a serviço de sugestões de ordem conceitual. Na primeira sala, com troncos de 7,20 m de altura e cascalho de ferro envolvendo as luxuosas imagens portuguesas do século 16, procurou-se um contraste de estranhamento. Ainda nesse ambiente, o público recebe estímulos intelectuais de outra ordem, com poemas de Gregório de Matos, padre Vieira ou Carlos Drummond de Andrade nas vozes de Maria Bethânia e outros intérpretes.
Os jesuítas são admirados em sua face "dinâmica", num palco-jangada com cerca de 20 imagens trazidas das missões jesuíticas guaranis do Sul (pela primeira vez em São Paulo). Já a estatuária beneditina fica em bases suspensas do teto, para transmitir a impressão de "arte isolada na clausura, direcionada à sublimação", conforme Lessa.
A seguir, 200 mil flores de papel crepom roxo e amarelo sobre hastes de ferro formam "tapetes" para introduzir os artistas nascidos já no Brasil do século 18, com exemplos das diversas oficinas leigas de imagens. O simbolismo é anterior à própria cenarização: as flores foram confeccionadas no Presídio do Carandiru (SP) pelos detentos religiosos do Pavilhão 7. Questionada quanto à possível insegurança das hastes de ferro no percurso labiríntico, Lessa atirou-se várias vezes sobre as mesmas, para demonstrar que são inofensivas.
O público não precisa chegar a tais extremos, mas deve imitar uma procissão para entrar em "Catedral", simulada com divisórias de madeira de mais de 15 metros de altura. "O Barroco já é, por si, uma apoteose", argumenta a cenógrafa.
Em outro trecho, "Buracos de Fechadura" revela ao espectador "indiscreto" detalhes arquitetônicos de igrejas e silhuetas de santos, à maneira da última obra concebida pelo dadaísta francês Marcel Duchamp. O visitante será convidado, ainda, a deixar pedidos escritos a seus padroeiros de devoção num imenso mural.
Por fim, a saída se dá como na "área de dispersão" de um desfile de escolas de sambas. Nesse local, a fé dos séculos passados é atualizada em vídeos inéditos do cineasta Eduardo Coutinho, fotos do célebre "Cristo Embrulhado" do carnavalesco Joãosinho Trinta e andores de procissão. O som é o de um samba-enredo da Mocidade Independente em forma de oração: "Padre Miguel olhai por nós / Se liga que essa gente tão sofrida...etc.". "Nós estamos lidando com esses elementos da forma mais sagrada, pois a alegria é uma grande redenção", afirma Lessa.
(AM)

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