São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 2005

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MARCELO COELHO

Massacres e milagres

Peço desculpas pelo lugar-comum, mas, se a chacina da Baixada Fluminense tivesse acontecido em algum bairro de classe alta de São Paulo ou do Rio, tudo estaria de pernas para o ar, governadores e ministros estariam pedindo demissão, o presidente Lula e sua comitiva não teriam embarcado para assistir ao funeral do papa e talvez começasse de fato a mudar a escandalosa rotina de violência policial instaurada no país.
Certas expressões correntes -"violência policial", por exemplo- terminam encobrindo de forma mais ou menos inocente o descalabro dos fatos. Talvez fosse mais exato falar em "criminalidade policial".
Toda vez que ligo o rádio e ouço histórias de seqüestro, sou informado de que algum PM participava do crime. Já não se percebe nenhum vestígio de ironia quando o locutor diz que tais e tais membros da polícia foram indiciados por formação de quadrilha. Será que não se trata de uma quadrilha só?
Quantos serão os policiais que ainda resistem a integrá-la é uma pergunta que não tenho como responder. Dada a situação de desgoverno crônico dessa área, quem sabe um dia seja mais fácil extingüir a polícia em vez de extingüir a criminalidade.
Segundo o que li, justamente se tentava moralizar a atuação policial naquele pedacinho da Baixada Fluminense. Os descontentes logo se manifestaram; mas não por meio de boicotes, tiros para o ar, uma greve que fosse. Saíram matando a esmo os cidadãos.
Jaílton da Silva, por exemplo, tinha 25 anos, trabalhava numa oficina mecânica e se lembrou de que devia R$ 2 no bar do Caíque, perto de sua casa. Foi fuzilado na calçada. Dentro do bar, um menino de 14 anos chamado Bruno jogava fliperama. Sua mãe viu os assassinos saírem de um carro e começarem o massacre. O impulso era atravessar a rua em direção ao bar, mas seu marido a arrastou para dentro de casa, evitando que fosse morta também.
Imaginemos que a história fosse um pouco -só um pouco- diferente. Imaginemos um grupo de oito policiais militares atuando num bairro como Higienópolis. De repente, esses policiais começam a ter problemas com a lei. Não tinham feito nada de mais: mataram duas pessoas, talvez traficantes, vagabundos ou assassinos. Em seguida, deceparam um dos cadáveres, jogando a cabeça no pátio da unidade em que serviam.
Os oito policiais terminam presos. Seus colegas não se conformam. Pegam um carro e -não vamos esquecer, estamos num bairro nobre de São Paulo- fuzilam 30 pessoas que entravam no shopping ou retiravam dinheiro numa agência do Itaú. Cobrem de sangue a calçada da avenida Angélica e acertam um menino de 14 anos que tinha ido pegar um videogame numa locadora da rua Maranhão.
Não sei se, nesse caso, as revistas semanais falariam da morte do papa na primeira página. Os protestos contra a chacina de Higienópolis sem dúvida parariam o país. Mas o que tivemos foi apenas uma chacina em Nova Iguaçu. Lá se realizou, aliás, um ato público contra o ocorrido: não juntou mais de 400 pessoas.
De qualquer modo, minha hipótese de uma chacina em bairro nobre é claramente forçada. Sabemos que qualquer região metropolitana brasileira tem sua parcela de áreas conflagradas, nas quais a disputa pelo território e pelo poder segue padrões dignos da África ou do Haiti (como bem lembraram Fernando Gabeira e Contardo Calligaris aqui na Ilustrada), ao lado de áreas onde uma caricatura de civilização, com seus shoppings e butiques, trata de seguir o seu caminho e seus caprichos.

 

Sobre o futuro da Igreja Católica, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci desenvolveu um raciocínio muito interessante no suplemento Mais! deste domingo. Ao contrário das igrejas protestantes, em especial as pentecostais, o catolicismo estaria cada vez menos voltado para a conversão dos indivíduos, afirmando-se apenas como uma religião característica de determinados povos e culturas específicas. Perde, assim, o poder de transmitir uma mensagem universal, para pessoas isoladas e "disponíveis" aos seus ensinamentos. Transforma-se em patrimônio cultural que carregamos de nascença, mais do que num conjunto de convicções a que aderimos individualmente.
Talvez isso explique, em parte, o paradoxo que vivemos nestes dias de comoção pela morte do papa. A maioria dos que lhe prestaram homenagem provavelmente não compartilha da extrema rigidez das atitudes defendidas pelo Vaticano. Está em curso, a meu ver, um fenômeno mais próximo do culto televisivo à personalidade de João Paulo 2º do que um movimento de reflexão individual no sentido de seguir as virtudes preconizadas por ele.
Assim, o catolicismo desindividualiza-se, "culturaliza-se", para seguir o raciocínio de Pierucci, mas sem deixar de ter apelo para o sujeito desenraizado e sem deixar de seguir uma linguagem "moderna": obedece à lógica da cultura de massas, das revistas de celebridades, da espetacularização. O papa, como já se dizia, é pop. Desse ponto de vista, sua intransigência em várias questões impopulares terá funcionado como o simulacro de um absoluto, como uma marca diferenciadora, como um recurso identitário, algo capaz de impor mais o respeito do espectador distraído do que atos de obediência ou introspecção.
Organiza-se, e imagino que a idéia não venha de agora, a canonização de João Paulo 2º. Noticiam-se seus primeiros milagres. Espero que sejam tão numerosos quanto os benefícios que a pesquisa com células-tronco é capaz de oferecer à espécie humana.

@ - coelhofsp@uol.com.br

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