São Paulo, quarta-feira, 13 de abril de 2005 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO Massacres e milagres
Peço desculpas pelo lugar-comum, mas, se a chacina da
Baixada Fluminense tivesse
acontecido em algum bairro de
classe alta de São Paulo ou do
Rio, tudo estaria de pernas para o
ar, governadores e ministros estariam pedindo demissão, o presidente Lula e sua comitiva não teriam embarcado para assistir ao
funeral do papa e talvez começasse de fato a mudar a escandalosa
rotina de violência policial instaurada no país. Sobre o futuro da Igreja Católica, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci desenvolveu um raciocínio muito interessante no suplemento Mais! deste domingo. Ao contrário das igrejas protestantes, em especial as pentecostais, o catolicismo estaria cada vez menos voltado para a conversão dos indivíduos, afirmando-se apenas como uma religião característica de determinados povos e culturas específicas. Perde, assim, o poder de transmitir uma mensagem universal, para pessoas isoladas e "disponíveis" aos seus ensinamentos. Transforma-se em patrimônio cultural que carregamos de nascença, mais do que num conjunto de convicções a que aderimos individualmente. Talvez isso explique, em parte, o paradoxo que vivemos nestes dias de comoção pela morte do papa. A maioria dos que lhe prestaram homenagem provavelmente não compartilha da extrema rigidez das atitudes defendidas pelo Vaticano. Está em curso, a meu ver, um fenômeno mais próximo do culto televisivo à personalidade de João Paulo 2º do que um movimento de reflexão individual no sentido de seguir as virtudes preconizadas por ele. Assim, o catolicismo desindividualiza-se, "culturaliza-se", para seguir o raciocínio de Pierucci, mas sem deixar de ter apelo para o sujeito desenraizado e sem deixar de seguir uma linguagem "moderna": obedece à lógica da cultura de massas, das revistas de celebridades, da espetacularização. O papa, como já se dizia, é pop. Desse ponto de vista, sua intransigência em várias questões impopulares terá funcionado como o simulacro de um absoluto, como uma marca diferenciadora, como um recurso identitário, algo capaz de impor mais o respeito do espectador distraído do que atos de obediência ou introspecção. Organiza-se, e imagino que a idéia não venha de agora, a canonização de João Paulo 2º. Noticiam-se seus primeiros milagres. Espero que sejam tão numerosos quanto os benefícios que a pesquisa com células-tronco é capaz de oferecer à espécie humana. @ - coelhofsp@uol.com.br Texto Anterior: Análise: Papa vira espetáculo, e chacina é esquecida Próximo Texto: História: Restaurados, afrescos de Pompéia são expostos no Rio Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |