INÁCIO ARAÚJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Inimigos do Povo" é, antes de mais nada, a filmagem de uma obsessão. A de um jornalista que, quando criança, teve a família morta pelo Khmer Vermelho e, adulto, busca quem possa explicar o que aconteceu.
Mais bem colocado para isso do que o diretor Thet Sambath é Nuon Chea, o Irmão Número Dois, braço direito do ditador Pol Pot. Nuon Chea é, compreensivelmente, um homem de poucas palavras. Diz Sambath que a aproximação com ele levou três anos.
É aos poucos que o Número Dois falará. O primeiro reconhecimento de dúvida é político: "Soubemos liberar o país do domínio americano, mas não fazer o povo feliz". Há quase modéstia: dois milhões de mortos em mais ou menos três anos não é feito para qualquer um.
É um feito para muitos, de fato. E Sambath (acompanhado por Rob Lemkin, coautor) vai em busca dos ex-homens do regime. Os homens da banalidade do mal, diria Hannah Arendt.
Primeiro, dizem: "Não é comigo". Aos poucos, a versão muda. Há o arrependimento (que pode ser da boca para fora), a dúvida (sincera), expressa por um deles, sobre quantas reencarnações levará para voltar à Terra como homem. Saber o quão hediondos são os crimes não os impede de demonstrar as formas estarrecedoras de assassinato que praticaram.
Não fosse a dimensão hiperbólica dos malfeitos do Khmer Vermelho, seria possível dizer que o regime cambojano seguiu o padrão de paranoia dos instaurados por Stálin: sendo todos inimigos em potencial, qualquer um pode ser preso ou executado. Segue-se um regime policial que, além do mais, adquire autonomia. Daí para a catástrofe é um passo.
Sambath fala de uma catástrofe ao mesmo tempo coletiva e pessoal. Fala a um homem, o Número Dois, que parece mal poder imaginar o genocídio que pesa em suas costas. Ao ser confrontado com o fato de que Sambath teve os parentes mortos no regime, parece não ter expressão nenhuma. É o vazio completo. Parece que não compreendia, então, do que se tratava. E ainda não compreende.