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RESENHA DA SEMANA
Só para loucos
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
E m meados dos anos 60, "O
Lobo da Estepe" (1927), de
Hermann Hesse (1877-1962),
começou a ser lido como uma
espécie de "O Pequeno Príncipe" por toda uma geração influenciada primeiro pela psicanálise e em seguida pelos ecos
do movimento hippie.
Hesse virou moda. Seus livros
foram devorados com um espírito de culto. Se você passou a
infância naqueles anos psicodélicos, deve ter tropeçado pelo
menos uma vez em algum dos
romances do autor (Prêmio Nobel de 46), esquecidos na borda
de uma piscina ou ao lado de
uma cadeira de praia e discutidos pelos adultos como alegorias da procura espiritual do eu
pelo viés do inconsciente psicanalítico ("Demian") ou do misticismo orientalista ("Sidarta").
É muito provável que a "literatura de mensagem" de Hesse,
que tanto marcou os leitores nos
anos 60/70, também esteja ironicamente na origem dos livros de
Paulo Coelho, em seu aspecto
massificado de "pérolas de sabedoria".
Ironicamente, porque, ao contrário do que pode parecer, "O
Lobo da Estepe" não é um romance fácil. Ainda mais num
mercado que é o avesso dos valores que o livro propõe, um
mundo em que a idéia de autoconhecimento foi invertida e
transformada em impostura e
lugar-comum, vulgarizada como estratégia de marketing e
vendas.
"O que chamamos cultura, o
que chamamos espírito, alma, o
que temos por belo, formoso e
santo, seria simplesmente um
fantasma, já morto há muito, e
considerado vivo e verdadeiro
só por meia dúzia de loucos como nós?", pergunta o protagonista.
Com a distância do tempo, a
atual reedição (a 26ª) de "O Lobo da Estepe" prova que, a despeito de seu lado "filosófico",
que o tornava aparentemente
mais acessível nos anos 60, o romance de Hesse é, do ponto de
vista literário, extremamente
complexo, imaginativo e inovador para a época em que foi escrito. Um texto que oscila entre
o simbolismo e o surrealismo,
criando um mundo onírico que
lembra os pesadelos das novelas
de Schnitzler e dos contos de
Hoffmann.
A misantropia, o solipsismo e
a inadequação de seu protagonista ao mundo, descontadas as
eventuais referências à ânsia de
um "encontro com Deus", também estão de alguma forma na
origem dos personagens de
Thomas Bernhard: "O Lobo da
Estepe, o sem pátria e solitário
odiador do mundo burguês. (...)
Não se devem considerar suicidas apenas aqueles que se matam. (...) Essa classe de homens
se caracteriza na trajetória de
seu destino porque para eles o
suicídio é a forma de morte mais
verossímil (...). Não estou satisfeito em ser feliz. (...) A infelicidade de que necessito (...) me
permitiria sofrer com ânsia e
morrer com prazer. (...) Anseio
por uma dor que me prepare e
me faça desejar a morte", diz o
narrador do romance de Hesse.
Bernhard chegou a declarar
numa entrevista à TV austríaca:
"Quando descrevo este gênero
de situações centrífugas encaminhadas na direção do suicídio, trata-se certamente da descrição de estados em que eu próprio me encontro e em que, por
outro lado, talvez me sinta bem
enquanto escrevo, justamente
porque não me suicidei, porque
escapei disso".
Assim também, ao final de "O
Lobo da Estepe", o protagonista
entra num teatro mágico, que
lhe abre, como uma droga, as
portas da percepção para o interior do seu inconsciente e se depara com um letreiro que lembra bastante a literatura de Bernhard: "Delicioso suicídio! Você
se arrebenta de rir!".
Todo o problema do personagem do livro de Hesse é um permanente mal-estar cuja fonte é a
inadequação do seu espírito à
sociedade, à massa, à média e à
vulgarização burguesa da vida e
dos valores. É por isso que ele se
define como "lobo da estepe".
Aos 48 anos, aluga um quarto
mobiliado na casa de uma senhora onde passa a viver isolado
do mundo. É um intelectual misantropo. Suas andanças são ao
mesmo tempo um mergulho
simbólico dentro de si mesmo e
uma redescoberta sensorial dos
prazeres físicos.
Quando sai para a rua, as coisas se sucedem como se ele estivesse sonhando ou alucinando e
como se tudo dissesse respeito a
si mesmo. Um mundo bem
mais imaginário e simbólico do
que real.
A certa altura, recebe de um
propagandista ambulante um
panfleto que é a espantosa análise de sua própria personalidade.
Encontra uma mulher que é, ao
mesmo tempo, a lembrança de
um amigo de infância e seu duplo. É levado a um teatro mágico, "só para loucos", cujo efeito
é semelhante ao de uma droga
de autoconhecimento.
A duplicação de si se estende
por todo o romance e culmina
no jogo de espelhos desse teatro
mágico, em que o protagonista
descobre que o eu é múltiplo. O
autor se duplica em narrador e
este, em elementos de sua própria narrativa: "Assim como a
loucura, em seu mais alto sentido, é o princípio de toda sabedoria, assim a esquizofrenia é o
princípio de toda arte, de toda
fantasia". Ao que só lhe resta,
como em Thomas Bernhard,
"viver e aprender a rir".
Livro: O Lobo da Estepe
Autor: Hermann Hesse
Tradutor: Ivo Barroso
Editora: Record
Preço: R$ 27 (240 págs.)
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