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São Paulo, terça-feira, 13 de maio de 2003

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DISCO/CRÍTICA

Guilherme de Brito casa amargura e ternura

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando recebeu convite da gravadora independente Lua Discos para voltar a gravar, há dois anos, o sambista carioca histórico Guilherme de Brito preferiu a ousadia. Abandonou por ora os clássicos da parceria com Nelson Cavaquinho (1910-86) e foi desvendar composições inéditas e desconhecidas em "Samba Guardado".
Cumprida aquela etapa, concede a graça de voltar a cantar os clássicos em "A Flor e o Espinho", que chega agora às lojas, na flor de seus 81 anos. À elegância inata do sambista se somam as da produção de Moacyr Luz e do acompanhamento delicado pelo Trio Madeira Brasil.
Voltar aos clássicos é o que ele já havia feito nos três discos que pôde gravar em tempos idos. Mas foram todos lançados de forma independente, e são todos raridades hoje em dia.
Assim, mesmo se menos impactante que "Samba Guardado", o novo CD não deixa de atualizar o caráter documental, dispondo Guilherme a cantar uma vez mais canções que sempre celebrizaram mais o parceiro Nelson Cavaquinho que ele próprio.
Estão ali algumas das obras-primas inquestionáveis do cancioneiro nacional, como a faixa-título, "Folhas Secas", "Pranto de Poeta", "Quando Eu Me Chamar Saudade", "Minha Festa".
Ele as canta com voz fragilizada, inserindo a melancolia do tempo avançado na tristeza desde sempre inerente a quem concebeu versos lancinantes como "tire seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor" (de "A Flor e o Espinho"). Quem conseguiria passar incólume por tão túrgida recombinação?
Ex-mecânico em fábrica de máquinas de calcular, Guilherme costura recombinações com precisão. Chama, por exemplo, Beth Carvalho para cantar com ele a tristíssima "Folhas Secas".
Toma partido, assim, de célebre confusão ocorrida na MPB dos anos 70: o samba fora feito para Beth, afilhada artística de Nelson, mas foi surrupiada por inteligentíssima Elis Regina, que teve assim a primazia de lançá-la. Elis ausente, Guilherme dá a Beth o que é de Beth.
Em "Distância", borda o inusitado de uma parceria e um dueto com o áspero Fagner, firmando em fazendas cearenses um fio de comunicação com o samba do Rio de Janeiro.
Amigos do samba como Elton Medeiros (apenas batucando caixinha de fósforo em "Gotas de Luar"), Moacyr Luz (em "Minha Festa") e Beto Cazes (na percussões de "Pranto de Poeta", "Minha Festa" e da simbolista "Garça") também passeiam pelo CD.
Por essas e outras, amizade e ternura gotejam na voz de Guilherme como lados de trás da tão decantada amargura explícita da parceria entre ele e Nelson Cavaquinho.
Nisso, é preciso reouvir "O Dono das Calçadas", que mergulha o fio de voz de Guilherme em versos ternos e tenros como "eu que já vaguei nas madrugadas/ e já fui o dono das calçadas/ pra todos aqueles que me estenderam a mão/ dividi meu coração".
Sombra de pieguice? Nada. Plena de acidez, a melancolia de Nelson e Guilherme não tinha e não tem medo de visitar o lado ensolarado. E Guilherme de Brito segue emocionado, com "o mesmo coração que ainda tem amor pra dar" de que fala "O Dono das Calçadas". Ai, ai.


A Flor e o Espinho    
Artistas: Guilherme de Brito e Trio Madeira Brasil
Lançamento: Lua Discos
Quanto: R$ 25, em média



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