São Paulo, quinta-feira, 13 de maio de 2004

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"Dou de bandeja a fórmula para ser copiado"

FREE-LANCE PARA A FOLHA

O jogo é a arte. As regras variam de acordo com a situação. A "pintura" figurativista-abstrata "sobre vaca", obra inédita que integra a exposição no ITO, foi executada segundo a seguinte orientação de Leirner: "Preencher todo o espaço com "stickers" auto-adesivos "made in China" aleatoriamente, sem deixar um espaço vazio, a la Pollock". Leia a seguir entrevista de Leirner à Folha durante a montagem da mostra. (JMo)
 

Folha - Por que Duchamp, e não Warhol?
Nelson Leirner -
A gente se encontrou. Nos anos 70, quando eu comecei a conhecer bem a obra dele, percebi que os trabalhos que eu fazia sem ter conhecimento da existência de Marcel Duchamp coincidiam com seu pensamento e encontrei nele uma identidade. Então, naquela época, eu resolvi dizer: "Duchamp, eu quero ser seu sobrinho". Depois eu venho a encontrar Beuys, que me interessou muito pela forma como ele encarava a religiosidade. Depois, Andy Warhol, porque ele era um artista que colocava em prática seu discurso. Não adianta você falar que vai trabalhar com a relação de consumo e depois você não mostrar como seu trabalho se torna produto desse consumo, e Andy Warhol enxergou isso. Depois eu encontrei na minha vida o Kabakov e assim por diante. Eu gosto de dialogar com quem me interessa, porque eu acho que quem me interessa vai poder responder às minhas perguntas. E é desse diálogo que eu vivo.

Folha - Mas entre todos eles quem você elegeu, até para homenagear diretamente, foi Duchamp...
Leirner -
Porque é o meu parente mais próximo. Assim como eu homenageio a minha mãe [na obra "Uma Viagem para Campos do Jordão", por ocasião do centenário de nascimento de Felicia Leirner] porque foi ela quem me empurrou para dentro deste meio, eu homenageio Duchamp, porque ele também foi decisivo na minha relação com a arte.

Folha - Herdeiro do pai da arte conceitual, é de se imaginar que você delega a produção. Você coloca a mão em alguma coisa?
Leirner -
Não, em nada. É engraçado que, em relação ao artista, as pessoas cometem um erro crasso: elas acham que o artista é o único que tem o poder de realizar a obra e elas deixam escapar que basta determinar a regra do jogo. Nessa exposição eu determinei regras para todos os trabalhos, nem vi a montagem do "Futebol", pedi que separassem os objetos por tamanho e por entidade e dei a regra: "Comece a circular o campo com os menores e vá aumentando até terminar com os mais altos. Faça grupos de entidades para formar blocos de cor, depois siga uma linha reta usando a mesma regra". E vou para casa. Volto no dia seguinte e está impecável.

Folha - O trabalho que você vai mostrar na galeria Brito Cimino é uma espécie de "Boîte-en-Valise" (de Duchamp), que condensa todas as suas referências?
Leirner -
É, mas eu trouxe para a galeria a minha biblioteca real, não é condensada. É a biblioteca do meu ateliê, com as prateleiras, tudo. E todos os objetos que me interessam. Todos os livros e revistas em que saiu alguma coisa sobre o meu trabalho estão aqui, a foto do Dog, meu cachorro que eu adoro, alguns santos barrocos do século 19 que eu ganhei da minha mãe... E, exatamente do mesmo tamanho, vou mostrar uma réplica fotográfica da biblioteca.

Folha - A parte "real" da instalação vai estar à venda?
Leirner -
Tem que ser uma proposta muito tentadora para eu me desfazer de coisas que são muito íntimas, é como aquele filme em que o marido deixa a mulher dormir com outro homem por um milhão de dólares... Eu concordo que tudo tem seu preço.

Folha - O seu trabalho está se tornando mais cínico com o tempo?
Leirner -
Pode ser, mas sabe por quê? Porque hoje a sociedade aprendeu a lidar com a agressão. A sociedade sempre teve muito medo do artista, que a agredia muitas vezes diretamente. Como foi que ela aprendeu a lidar com isso? Consumindo. No momento em que eu consumo, você pode me agredir à vontade porque eu não sinto mais os seus tapas. Então a sociedade fica consumindo você o tempo todo. Você grita alto, esperneia, e nada faz a mínima diferença. Eu não tenho mais como sair da leitura que se faz do meu trabalho. Se eu fizer um monte de lixo, se eu quebrar toda a minha obra, não adianta. Quando a leitura já está dada, você simplesmente tem que voltar àquilo que importa: a intuição. Só.

Folha - Quando você descobriu que havia artistas vendendo cópias de seu "Homenagem a Fontana", por que não os processou?
Leirner -
Nunca faria isso com ninguém que copiasse meu trabalho, porque eu dou margem a isso. A única coisa que me levaria a processar alguém é se falsificasse minha assinatura, que é outra coisa. Mas acho que minhas obras gritam o tempo todo: "Me copie". Eu estou dando de bandeja a fórmula para ser copiado. Mas esta é a grande dificuldade das pessoas: elas não têm coragem. Tudo nesta mostra é possível fazer idêntico.


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