São Paulo, quinta-feira, 13 de maio de 2004

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DANÇA/CRÍTICA

Pina Bausch inventa o seu (fragmentado) Japão

INÊS BOGÉA
ENVIADA ESPECIAL A WUPPERTAL

O espaço parece infinito, sem centro; e o movimento se condensa, se funde, se replica. É o Japão visto de dentro, por outros olhos, buscando sinais na noite das almas para compor a nova peça de Pina Bausch, que estreou em Wuppertal (Alemanha).
No palco, saindo do chão, a cauda erguida e um pedaço do corpo de uma baleia. Ecologicamente melancólica, uma chuva de papel picado cai lentamente, da metade até o fim. O fundo e o chão são pretos; aos poucos a cena se deixa invadir pela cor dos figurinos, do bege ao vermelho, do preto ao branco. A música vai do tradicional ao contemporâneo japonês, do pop americano a uma batucada. O tempo fica suspenso na densidade de um instante, que se multiplica como um cristal dividido em mil pedaços.
Na seqüência de vários espetáculos que Bausch vem criando há anos a partir de residências em outros países -entre outros, Itália, EUA, Portugal e Brasil (onde estreou "Água" em 2001)- a nova peça, ainda sem nome, é seu trabalho japonês. Foram aproximadamente três semanas que a companhia passou em lugares como Omiya, Saitama e Tóquio, vivenciando arte marcial, meditação zen budista, parada típica, confecção de bonecas, memorial de guerra, fazendas de arroz, sítios pré-históricos.
Dessa imersão, resulta a extroversão, que não é tanto do Japão e, sim, do que o Japão fez acontecer no país inominável habitado por cada bailarino dentro de si. Nesse contexto, os símbolos ganham vida dupla: seja nos objetos (leques, quimonos), seja nas palavras (sushi, bonsai, gueixa), seja em cenas cotidianas (venda de gravatas, robô) ou no jeito de andar e, sobretudo, no movimento das mãos e dos braços, tudo aqui é um repertório de imagens prontas e, ao mesmo tempo, a reanimação intensa dessas mesmas imagens.
Certa tensão característica entre homens e mulheres, nas peças mais antigas, vem traduzida para um idioma de veladuras e descontinuidades. A dança vive da estranheza nas justaposições. As coisas se revelam ali, onde dentro e fora se sucedem; sensualidade e erotismo atingem um grau especial.
Como de hábito, a construção é fragmentada -o todo é uma sobreposição das partes, e ainda está aberto a rearranjos. Uma atriz (Mechthild Grossmann) pontua a peça com frases de autores como Saramago, Brecht, Büchner e Szymborska, além de palavras dos bailarinos.
Na primeira parte, tudo parece modulado pela energia de uma ausência, de uma fenda que se abre em outra direção. A sutileza de um traço risca o espaço nos gestos de Azusa Seyama; o veterano Dominique Mercy explora ao máximo a potência controlada dos gestos da luta marcial; e Dittts Miranda Jasjfi faz da sinuosidade uma arma da insinuação.
A segunda parte contrapõe as vibrações sutis a outras, pulsantes, concentradas em gestos que se multiplicam como pequenas ondas. Momento especial é o solo da brasileira Regina Advento, em que os movimentos explodem por dentro: o que era pequeno e delicado ganha novos volumes.
Se são marcas reconhecíveis das obras passadas, também portam novas nuanças. E não é das pequenas diferenças, afinal, que se trata? O grande mapa que se vai formando, na memória, depois de todas essas peças é menos uma carta do mundo que uma geografia dos afetos. Cabe ao gênio de Pina Bausch, mais uma vez, definir a geografia dos corpos, naquela dimensão onde afeto, corpo e memória viram uma coisa só, que pode até ser um Japão.


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