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DANÇA/CRÍTICA
Pina Bausch inventa o seu (fragmentado) Japão
INÊS BOGÉA
ENVIADA ESPECIAL A WUPPERTAL
O espaço parece infinito,
sem centro; e o movimento
se condensa, se funde, se replica. É
o Japão visto de dentro, por outros olhos, buscando sinais na
noite das almas para compor a
nova peça de Pina Bausch, que estreou em Wuppertal (Alemanha).
No palco, saindo do chão, a cauda erguida e um pedaço do corpo
de uma baleia. Ecologicamente
melancólica, uma chuva de papel
picado cai lentamente, da metade
até o fim. O fundo e o chão são
pretos; aos poucos a cena se deixa
invadir pela cor dos figurinos, do
bege ao vermelho, do preto ao
branco. A música vai do tradicional ao contemporâneo japonês,
do pop americano a uma batucada. O tempo fica suspenso na densidade de um instante, que se
multiplica como um cristal dividido em mil pedaços.
Na seqüência de vários espetáculos que Bausch vem criando há
anos a partir de residências em
outros países -entre outros, Itália, EUA, Portugal e Brasil (onde
estreou "Água" em 2001)- a nova peça, ainda sem nome, é seu
trabalho japonês. Foram aproximadamente três semanas que a
companhia passou em lugares como Omiya, Saitama e Tóquio, vivenciando arte marcial, meditação zen budista, parada típica,
confecção de bonecas, memorial
de guerra, fazendas de arroz, sítios pré-históricos.
Dessa imersão, resulta a extroversão, que não é tanto do Japão e,
sim, do que o Japão fez acontecer
no país inominável habitado por
cada bailarino dentro de si. Nesse
contexto, os símbolos ganham vida dupla: seja nos objetos (leques,
quimonos), seja nas palavras
(sushi, bonsai, gueixa), seja em
cenas cotidianas (venda de gravatas, robô) ou no jeito de andar e,
sobretudo, no movimento das
mãos e dos braços, tudo aqui é
um repertório de imagens prontas e, ao mesmo tempo, a reanimação intensa dessas mesmas
imagens.
Certa tensão característica entre
homens e mulheres, nas peças
mais antigas, vem traduzida para
um idioma de veladuras e descontinuidades. A dança vive da estranheza nas justaposições. As coisas
se revelam ali, onde dentro e fora
se sucedem; sensualidade e erotismo atingem um grau especial.
Como de hábito, a construção é
fragmentada -o todo é uma sobreposição das partes, e ainda está
aberto a rearranjos. Uma atriz
(Mechthild Grossmann) pontua a
peça com frases de autores como
Saramago, Brecht, Büchner e
Szymborska, além de palavras
dos bailarinos.
Na primeira parte, tudo parece
modulado pela energia de uma
ausência, de uma fenda que se
abre em outra direção. A sutileza
de um traço risca o espaço nos
gestos de Azusa Seyama; o veterano Dominique Mercy explora ao
máximo a potência controlada
dos gestos da luta marcial; e Dittts
Miranda Jasjfi faz da sinuosidade
uma arma da insinuação.
A segunda parte contrapõe as
vibrações sutis a outras, pulsantes, concentradas em gestos que
se multiplicam como pequenas
ondas. Momento especial é o solo
da brasileira Regina Advento, em
que os movimentos explodem
por dentro: o que era pequeno e
delicado ganha novos volumes.
Se são marcas reconhecíveis das
obras passadas, também portam
novas nuanças. E não é das pequenas diferenças, afinal, que se
trata? O grande mapa que se vai
formando, na memória, depois de
todas essas peças é menos uma
carta do mundo que uma geografia dos afetos. Cabe ao gênio de Pina Bausch, mais uma vez, definir
a geografia dos corpos, naquela
dimensão onde afeto, corpo e memória viram uma coisa só, que
pode até ser um Japão.
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