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CINEMA
Em seu novo filme, "La Mala Educación", que abriu o festival, diretor critica pedofilia de padres e o governo espanhol
Cannes traz "soco no estômago" de Almodóvar
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
Com um soco numa mão e um
carinho na outra. Foi assim que o
Festival de Cannes recebeu os visitantes de sua 57ª edição ontem,
no balneário francês que lhe empresta o nome, exibindo na primeira sessão de cinema e em sua
abertura oficial o novo filme de
Pedro Almodóvar, "La Mala Educación" (a má educação, um jogo
de palavras com os que não têm
educação e os que foram educados de maneira errada).
Polêmico, forte, bem feito, o filme inédito do diretor espanhol de
42 anos é um título digno do mais
prestigioso festival de cinema do
mundo, que de quebra viu a
ameaça de greve de trabalhadores
técnicos ser dissolvida num acordo de última hora.
Ao narrar três triângulos amorosos diferentes, que se passam
em 1964, 1977 e 1980 e acabam envolvendo as mesmas quatro pessoas, o 16º longa de Almodóvar
faz uma bonita homenagem ao
gênero noir norte-americano ao
mesmo tempo que desfere uma
bofetada certeira na prática da
Igreja Católica de varrer para debaixo do tapete a prática criminosa de pedofilia de alguns de seus
membros. Sobram criticas para a
classe artística e até ao Ministério
da Cultura espanhol.
Ignácio (como o santo de Loyola) e Enrique são dois colegas de
dez anos que se apaixonam enquanto estudam numa escola católica; descobertos, o segundo será expulso pelo padre Manolo,
que comanda a instituição e não
quer dividir o amor do primeiro
-nem a possibilidade de continuar assediando-o sexualmente.
Os três vão se encontrar anos
mais tarde, quando Enrique virou
um jovem diretor de sucesso, o
pároco largou o hábito e Ignácio
escreveu um texto em que conta
toda a história.
Exibido fora de competição (Almodóvar foi melhor diretor e prêmio especial do júri em Cannes
em 1999, com "Tudo sobre Minha
Mãe"), o thriller gay é, ao lado do
imediatamente anterior, "Fale
com Ela" (2002), o filme mais maduro do espanhol, almodovariano da abertura ao final, com seus
excessos, cores fortes, flerte com a
marginalidade e trilha sonora
muito bem cuidada.
Duas cenas devem entrar para a
lista das mais perturbadoras do
cinema recente e falam mais sobre a onda de denúncias de pedofilia que abala a Igreja Católica do
que dez editoriais do "New York
Times". Na primeira, acompanhado pelo padre molestador ao
violão, Ignácio canta uma versão
de "Moon River" momentos antes de ser atacado pela primeira
vez, enquanto os coleguinhas nadam, despreocupados. É a perda
da inocência, da infância e da
chance de vida normal.
Na outra, canta para o mesmo
padre no dia do aniversário dele
outra versão espanhola, desta vez
de "Torna a Sorrento", depois de
ser entregue como um presente
por um cúmplice do religioso. O
olhar guloso do padre Manolo e a
desfaçatez de seus colegas de igreja chegam a causar engulho.
"La Mala Educación" confirma
o rumor que cercava a véspera da
abertura de Cannes e colocava
Gael García Bernal no posto de
candidato a principal intérprete
masculino desta edição. O ator
mexicano, que segundo Almodóvar tem o sorriso de Julia Roberts,
mostra versatilidade em três papéis, mas é como o travesti Zahara
que brilha mais, uma "femme fatale" obrigatória do gênero noir,
só que invertida.
Quanto às outras críticas, são
bem colocadas. Em certo momento, Enrique diz: "Não há nada
que me excite menos do que um
ator desesperado por trabalho" (o
próprio Almodóvar repetiria a
afirmação depois, em conversa
com os jornalistas). Em outra hora, o mesmo personagem pergunta por que não recebeu uma importante carta. "Eu a remeti ao
Ministério da Cultura", justifica a
interlocutora. "Ah, foi por isso",
devolve ele.
(Em 2002, o órgão do governo
espanhol, ainda na gestão do premiê conservador José María Aznar, decidiu não escolher "Fale
com Ela" como a obra oficial indicada pela Espanha para tentar
concorrer ao Oscar de filme estrangeiro. O boicote não adiantou: o longa seria indicado em
duas categorias nobres, diretor e
roteiro, ganhando a última.)
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