São Paulo, quinta-feira, 13 de maio de 2010

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NINA HORTA

A fome da noite


Fecha a geladeira, abre de novo e assim vai-se o pudim inteiro; aconselho deixá-la aberta de uma vez


ACONTECE NAS melhores famílias. O passeio à geladeira nas profundas da noite. Os resultados quase sempre são pífios se for fase de regime. Além da geladeira estar tendendo para vazia, só tem coisas que não lhe tentam absolutamente à noite. Ninguém se senta na cozinha para comer folhas de alface crocantes nem tem vontade de passar um peito de frango na frigideira.
É uma fome da noite, ousada, curiosa, que não está nem aí para as convenções do que é bom ou ruim.
Estamos sós no mundo escuro, longe do olhar reprovador do outro. A noite é nossa, como seria a de um ladrão sem escrúpulos.
Tupperwares fechados. É um empecilho ao assalto, chato ter que colocar tudo sobre a pia, abrir e fechar depois. Malditos, não sei quem inventou aquelas milhares de tampas e caixinhas desencontradas. Em geral são cheios de arroz, feijão, um bife à milanesa gelado, restos de uma salada. O mais perverso é o bife, que muitas vezes é retirado e colocado, frio, com maionese, no pão da manhã, muxibento. Uma boa Coca-Cola bem geladinha ajuda a descer.
O que mais revela sua potência noturna é a pizza. No micro-ondas não esquenta direito, mas, no forno, nem pensar. O negócio é aquecer no micro mesmo, de onde ela sai como se o menino do delivery tivesse caído num mangue e salvado a pizza napolitana para a eternidade das madrugadas.
O capítulo "doces" é bendito. São necessárias algumas colheres porque o glutão vai pegar uma colherada de pudim ou de musse de chocolate, só uma, só uma. Fecha a geladeira, abre de novo e assim vai-se o pudim inteiro, mas às colheradas.
Isso é eficiente também com requeijão e doce de leite. Aconselho deixar a geladeira aberta de uma vez, como um display de supermercado. Diminui um tanto a culpa por não se escutar o bater repetitivo da porta. Pode-se espetar uma colher de plástico em cada doce e fazer uma degustação. Ter gelatina diet é o mesmo que não ter nada, é a sobremesa atlética, de almoços saudáveis.
Lá em casa tem sempre uma caixinha de insuportáveis kiwis. Em falta de melhor, é abrir, descascar e a cozinha é tomada por um momento de beleza se a fruta estiver bem madura. Vai-se cortando a pele marrom, rude, e um verde brilhante, sedoso, toma conta. Não que se esteja morrendo de vontade de comer aquilo, não é fruta da noite, muito fria e elegante. Se por acaso houver jaca no freezer, é uma pedida porque jaca gelada não tem cheiro, é sorvete com gosto bom. Mas nunca esquecer de guardar de novo porque o cheiro volta e começa a encher a casa de palmeiras e elefantes e "tantam" de tambores.
Maionese sempre tem e uns tomates maduros, que também vão bem com o pão velho. Cuidado com pão preto orgânico. À meia-luz, corre-se o risco de se confundir fungo com terciopelo, com veludo e, quando se vê, já se está toda fungada.
A dificuldade é fazer alguma coisa sem barulho. Ovo frito dá cheiro, o perigo é descer a família inteira para compartilhar, então, nada que precise ir para a panela, nada. Tem que ser direto, como um copo de bom leite bem gelado. Se quiser variar, pode pôr o leite num prato fundo e sobre ele pedaços de orelha de goiaba bem doce. O caldo da goiaba faz estrias no leite e fica uma delícia silenciosa.
Se não for preciso acordar cedo no dia seguinte, um saco de pipoca não é de todo mau, pipoca de micro é boa para acompanhar filmes da madrugada. Aliás, o horário nobre da TV.
Balas de coco são uma ótima comidinha noturna, misturando com equilíbrio culpa e prazer.
Se tivéssemos espaço, entraríamos no capítulo "embutidos", um dos mais solicitados à noite. Salaminho em fatias disformes com um pouco da cera do invólucro, por exemplo. Tem gente que se contenta com arroz e feijão frios. Não fica bem, é trash demais.
Não esquecer de escovar os dentes, o que neutraliza um pouco o pecado.

ninahorta@uol.com.br


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